Estiva é a palavra que dá nome à comunidade mais próxima do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, na divisa entre os estados de Minas Gerais e Bahia. É também o nome de uma linda vereda! Mas, para mim, Estiva é o lugar que chamo de casa. Sou Raiane Pereira Müller, filha de Tereza Pereira de Souza. A mãe de minha mãe é Hermínia Pereira de Souza – vó Mina –, filha da Finada Alta – Altamira Pereira de Souza –, minha bisavó.
Só posso começar a contar quem eu sou falando das mulheres de minha família, que são minha inspiração, desde criança. É que com elas, principalmente, aprendi que meu sonho está onde eu decidir construí-lo. Aqui na Estiva a força das filhas da velha Hermínia é conhecida e reconhecida por muita gente. Há até quem diga que são mulheres mais fortes que muitos homens. Para mim, a força da minha gente está não só no trabalho, que é duro, e do qual não temos medo. Está também na doçura, na generosidade com as pessoas e no carinho que temos por essa terra. Não sei bem, desde que voltei para cá, quando começaram a me chamar “Raiane da Estiva”. Só sei que gosto. Pelo gosto que tenho por esse lugar e porque sei que não tem como separar a história de minha família da história da Estiva.
Os familiares mais velhos que eu conheci, com vida, foram os meus avós. Meu vô Gustavo, que chamavam de Nêgo, e a minha vó Mina. Minha avó nasceu numa comunidade chamada Saco Grande – que hoje não leva mais esse nome – aqui pertinho da Estiva, e sempre morou aqui. E o meu avô veio da Larga, que é outra comunidade da Chapada Gaúcha. Meu tio Jau é quem me ajuda a contar essa história. Ele diz que meu vô Nêgo veio pra cá com treze anos, junto do pai dele, Sebastião, que nós todos chamamos de Tidão. Na época, eles vieram de um lugar conhecido por Suçuarana para trabalhar em uma fazenda da Barra da Onça, aqui perto. Quando o dono da fazenda em que trabalhavam vendeu as terras, saíram buscando lugar. Este cantinho aqui, chamado Estiva, na época não era povoado; não tinha ninguém. Tinha algumas taperas antigas. Chegaram e fizeram morada. A minha avó conheceu meu avô aqui, num forró. Casaram-se e também fizeram morada na Estiva. Isso foi no ano de 1950. Juntos, Mina e Nêgo tiveram 13 crianças, sendo 8 mulheres e 5 homens: Alberto, Cleonice, Dalva, Ilda, Jacinto, Lindomar, Maria, Máximo, Nair, Osmar, Sebastiana, Tereza e Zelinha.
Meus bisavós, conheço muito, mas pelas histórias que me contam desde que nasci. A Finada Alta tinha tanta personalidade que a emprestou para filho e neta. Assim, um de seus filhos, irmão de minha vó Mina, é “João de Alta”, e a filha dele, Maria, todos conhecem por “Maria de João de Alta”. Dizem que d. Altamira era muito bondosa e que seu marido, Tidão, era igual. Dizem também que eram pessoas de muita sabedoria e que meu bisavô era meio que adivinho. Quando falava alguma coisa, era isso mesmo! Às vezes, as pessoas até não acreditavam. E era!
Por conta dessas histórias que ouvi, e ainda ouço, é que sei como era a vida na Estiva – e hoje, com meu trabalho, sonho com como ela pode vir a ser. Meus tios contam muito da lida. Das noites que passavam moendo cana, fazendo rapadura, ralando mandioca e jogando verso depois de um dia inteirinho de trabalho na roça. Eles falam – meu tio Jau (como é conhecido Jacinto), minha mãe e meu tio Berto (como chamam Alberto) – que tem coisa que está acontecendo hoje e que o Tidão já tinha dito: “Ó, vai chegar um dia que vai ser assim, assim…”.
Da família de meu pai, sei que eram gaúchos. Meu pai veio para Chapada Gaúcha quase quarenta anos atrás. Na época não tinha cidade. Nem uma vila. Só mato bruto mesmo. Ele veio com uns gaúchos que começaram a plantar. Chegou quando não tinha nada, conheceu a minha mãe, Tereza. Casaram-se e viveram por muitos anos na Estiva. Eu nasci nessa região, em Formoso. Mas vim pra cá muito pequenininha. Meu pai sempre gostou de uma vida errante. Construía uma vida boa num lugar e logo o corpo pedia movimento e a gente se mudava, sem se afastar muito. Até os meus 6 anos de idade moramos nesta região, até que o parque chegou bem perto.
Antes do meu nascimento, e antes da chegada do parque Grande Sertão Veredas, o ritmo da vida seguia o tempo do sertão, que ainda hoje sobrevive, se observarmos bem. A geração de minha mãe, meu pai, meus tios e tias viveu nesse compasso que estabeleceu costumes e uma percepção do perto e do longe bem diferente do que experimentamos hoje em dia. Mesmo eu pequenininha, ainda me lembro de meu pai saindo daqui a pé e indo fazer compras na Chapada Gaúcha. Na volta, a pé também, vinha com um saco de cinquenta, sessenta quilos nas costas, andando por mais de cinco horas. Esse ritmo sertanejo ditava também as relações com as cidades grandes e o entendimento do que era melhorar de vida.
Meu tio-avô João de Alta, por exemplo, em 1975, mandou uma de suas filhas para a casa de um sobrinho, em Brasília. Pensava em oferecer melhores condições para a menina, que poderia estudar. Mas para Maria, que na época tinha apenas 8 anos, esse tempo foi muito sofrido. Foi o tempo de estar longe de casa, de tudo o que conhecia e do que queria estar perto. Foi o tempo em que perdeu sua mãe e não pôde nem chorar. Naquela época, esse tipo de coisa era mais comum do que hoje em dia. Muitas famílias do sertão, dos lugares em que quase nada chegava, enviavam suas crianças para trabalhar em casas de família nas cidades grandes, com a esperança de que pudessem trocar trabalho por instrução. Mas grande parte dessas crianças, como minha tia Maria, perderam suas infâncias sem ganhar nenhum diploma em troca. Tia Maria, com muito custo, conseguiu estudar por três anos. Até que voltasse, aos 17 anos, pra junto do pai, foi quase como se não tivesse vivido – apenas trabalhou duro, sem ganhar nada por isso. Para ela, retornar é que foi, de verdade, melhorar de vida.
Tia Maria voltou em 1984. Com 17 anos, não brincava mais de fazer boneca de pano e nem de espiga de milho. Mas vinha para a casa de vó Mina sempre, porque era onde aconteciam muitas festinhas e forrós em que as moças e rapazes se encontravam nos fins de semana. Foi onde se encantou com meu tio Berto, com quem se casou e teve 6 filhos. Do mesmo jeitinho que minha vó Mina conheceu meu avô. Ouvir minha tia contando até dá um pouco de saudade do que eu não vivi. E no dizer dela sobre os forrós, conta também sobre as diferenças da época passada para hoje em dia. Conta que no seu tempo os forrós aconteciam em fins de semana ou dias santos. E lembra também que, naquela época, em dia santo ninguém trabalhava! Nas palavras dela: “hoje é que tá tudo desembestado, o povo não respeita mais dia santo, nem nada. Até dia de domingo o povo trabalha. Mas de primeiro era assim, né? Dia santo, era dia de passear, da gente ir na casa dos parentes. Saía cedo, vinha pra cá, almoçava. […]. Então juntava todo mundo aqui, a gente fazia caipirinha, bebia caipirinha, dançava nesses terreiros… Era assim!”.
Mesmo com todas as dificuldades que a distância e a falta de infraestrutura criavam, tia Maria não quis mais sair da Estiva depois que voltou. Formou família com tio Berto e fincou raiz. Depois do casamento, a frequência nas festas foi diminuindo na medida em que os filhos foram chegando. E ela, com a mesma determinação de quem cresceu tomando conta de si, dava um jeito de resolver qualquer situação que parecesse difícil. Com a mesma doçura, sempre.
“Foi um filho atrás do outro. Um começando a andar, já tava saindo pra ganhar outro. Quando não dava tempo de sair pra cidade pra ganhar, ganhava era em casa mesmo e eu mesma fazia o parto e tudo. Não teve jeito! Teve um que eu ganhei só eu mesma. Eu e Deus. Ganhei, fiz tudo, cortei o umbigo, arrumei tudo! Desse jeito. […] Depois, quando Berto chegou, já tava deitadinha lá. A menina nasceu, não chorou também não. Precisou eu pegar nas duas perninhas dela, ó, e dar três tapinhas no bumbum pra poder chorar.” (Maria Souza Luz – Maria de João de Alta)
Meu tio Jau também fala de muitas coisas desse tempo que não sei bem quando é, porque é sempre “de primeiro” ou “antigamente”. Mas não duvido do que diz. Não só porque conta com detalhes e versos, mas porque também encontro hoje vestígios certeiros das coisas que ele guarda na memória. Quando ele conta que meu bisavô saía muito nas Folias de Reis, eu me lembro que em Formoso, onde minha sogra mora, ainda tem folia todo ano – e ainda hoje os foliões vão a cavalo! Canta tio Jau sobre as danças de terreiro, o jogar verso e a conquista em algum tempo no passado:
“Amanhã eu vou-me embora ê zãozãozão
Pela semana que vem ê zãozãozão
Quem não me conhece, chora ê zãozãozão
Quem diria que me quer bem ê zãozãozão
E aí evai!”
Com a chegada do parque a gente foi embora para Formoso. Naquela época, as pessoas, inclusive meus pais, pensaram: “vamos embora porque tudo vai virar parque”. Não sabiam que se o parque passasse pelas terras deles, teriam direitos. Foi assim que, com meus pais, morei em muitos lugares. Isso até os meus 15 anos, quando fui morar em Brasília. No tempo que eu passei por lá, adquiri alguns conhecimentos, mesmo não estudando. É que eu e meu esposo fomos para jogar futebol – e, para nós, isso foi um pouco mais que um sonho, mas isso é outra história que posso contar na próxima edição da Manzuá! Lá, tivemos contato com pessoas batalhadoras, interessantes e com muito conhecimento. Isso abriu a mente da gente. Porque sempre morando no interior, quando você chega lá, descobre o mundo, né? Além de um lugar para trabalhar, Brasília para mim tem esse significado, de abrir horizontes. Inclusive, hoje estou de volta e estudo muito por conta disso. Sei que o conhecimento abre portas e ajuda a entender os sinais que a vida dá.
Quase vinte anos depois de ir embora da Estiva, estou de volta. Minha mãe recebeu uma herança, em vida, de minha vó Mina. E o presente foi pra mim também. Minha mãe voltou e começou a trabalhar de novo nos brejos, como minha avó fazia antes. Eu tenho muitas lembranças, há uns 15 ou 20 anos, da vó Hermínia trabalhando na roça. Como diz meu tio Jau, plantava brejo em tudo quanto é lugar. Antigamente era isso: mulher também o tempo inteiro dentro de roça. E, na casa dela, ainda encontro os pilões que usavam para socar o arroz que plantavam. Tio Jau conta que esses pilões socaram muito arroz que colhiam nos brejos. Como na época não existia máquina para descascar arroz em Januária, para vender por lá eles tinham que limpar no pilão, porque se não fizessem isso, não conseguiam vender.
Com a volta de minha mãe, eu passei a vir mais pra cá também. Brasília era muita luta e muita correria, principalmente depois que minha filha, Ananda, nasceu. A vida na cidade grande não é fácil. Tem muita gente que é do interior e vai embora com vontade de melhorar de vida, mas chegando lá, só trabalha para comer e pagar aluguel, sem poder nem visitar a família. Nós demos sorte: meu marido tinha um bom trabalho e eu podia estar sempre junto de minha mãe. Mesmo sem ter do que reclamar, era muita peleja. Por isso, ao contrário da maior parte dos jovens da minha geração, decidimos voltar para a roça e vimos isso como uma chance de crescimento! Pensamos em trabalhar para a gente, tentar montar um negócio e aproveitar o estar perto da família para estudar. Hoje, na roça, tem muita oportunidade também. Ainda mais para quem, como nós, tem conhecimento e está cerca à cerca com o Parque.
Desde que voltei, um ano atrás, muita coisa aconteceu. Parte do que imaginamos pudemos realizar. Outras coisas não aconteceram como planejamos. E a pandemia fez com que alguns planos fossem adiados. Com tudo isso, encontramos mais dificuldades do que esperávamos, mas nada que nos faça desistir ou desacreditar. Estamos aí. Sabemos que somos novos e que dá pra mudar, se for o caso. Mas eu não quero, não! Gosto demais daqui. Ficar aqui é bom demais e, mesmo sabendo que algumas coisas demoram a dar resultado, já hoje, tudo o que eu cultivo consigo vender na Chapada.
Estar aqui hoje é buscar minhas lembranças de infância, juntar com o conhecimento adquirido no tempo que passei em Brasília, misturar com as histórias e saberes dos meus familiares mais velhos – os que conheci e os que não tive a sorte de conhecer – e sonhar com um bom futuro pra mim e para minha filha.
Sou da roça. Sempre fui. Lembro de ir pra beira do rio pescar. Lembro de ir para o brejo com meu pai plantar feijão. Desde pequena aprendi a plantar mandioca. Meu pai entende tudo de plantio e de construir, fazer funcionar as coisas de que precisamos. Já minha mãe não tem medo de trabalhar; preciso pedir pra ela sossegar. Eu, sempre que vinha pra cá, ajudava com as verduras que ela e meu pai vendiam na Chapada. Com essa bagagem, só foi preciso ter um pouco de determinação, usar a cabeça e planejar. Assim, há um ano, falei com meu marido: “A gente vai pra lá, a gente tem muita vontade e coragem. Vamos trabalhar e buscar algumas coisas para a comunidade também”. Foi assim que, logo que chegamos, começamos a pensar um pouco além dos plantios que poderíamos fazer. Conversando com meu tio Jacinto, pensamos em montar uma associação para ter mais voz e buscar melhorias para a comunidade, como arrumar as estradas que vêm pra cá.
Meu marido, que assim como eu veio da roça, sabe muita coisa também. A gente estuda, lê, busca informações, busca apoio para que o trabalho não seja apenas na enxada, mas seja mais leve. Com esse tipo de suporte de órgãos de pesquisa e secretarias, junto com nossa força de vontade, podemos investir no plantio do maracujá, e é possível até estudar a possibilidade de incrementar os plantios com adubação de tanques de criação de peixes.
A Estiva oferece, ainda, a chance de avistar o futuro por meio do turismo. Aqui posso pensar em, como diz o ditado, unir o útil ao agradável: estar onde gosto e contar com uma renda. Esse caminho, assim como o da agricultura, ganha mais sentido ainda quando coloco em movimento os saberes de quem veio antes de mim. Tio Jau é guia na região faz muitos anos. Conhece tudo por aqui e para o rumo de Formoso. Lá em Formoso eu também conheço. Fiz curso e já até cheguei a guiar por lá. É do que precisamos para receber as pessoas, fazer uma galinha caipira, vender uma cervejinha, oferecer um lugar para dormir. Começando pelo pessoal da Chapada mesmo que quando conversa comigo diz que se eu fizer, vem!
É que toda oportunidade que tenho, falo de onde sou. Vendendo verdura ou participando dos torneios de futebol, a Estiva vai comigo por onde vou. Quando perguntam onde moro, eu sempre tenho que dar uma palavrinha que a Estiva é isso, que a Estiva é aquilo. Porque a Estiva é maravilhosa! Já fiz algumas amizades na Chapada e, quando converso com as minhas amigas elas dizem: “Nossa, mas cê fica lá na roça, socada lá na grotinha…”. Estando na Estiva hoje, muitas vezes não tenho acesso à internet. Em minha casa não tem nem energia elétrica ainda, como em muitas outras casas da região. Mas, por outro lado, também não precisamos ter tranca nas casas, e nunca tivemos uma motobomba tirada do rio. Por conta disso, não me falta força para trabalhar. Hoje, não troco a tranquilidade e a paz que tenho na Estiva por nenhum outro lugar.
* Raiane Pereira Müller é produtora rural e estudante
** Luciana Patrícia de Morais é cientista social e historiadora. Pesquisadora do tema comida e identidade e produtora cultural em projetos de impacto social.