Memórias barranqueiras

Cinema e afeto às margens do Velho Chico

“Coloque o rio São Francisco na frente que ele vai te guiando”. Essas foram as palavras finais trocadas com o produtor, roteirista e diretor Dêniston Diamantino após longa e boa prosa em um fim de noite de domingo. O convite da Revista Manzuá indicava a missão de escrever sobre a importância do acervo audiovisual de Dêniston. Nesse caso, não havia como dissociar a obra de seu criador, cuja trajetória como realizador audiovisual vem se construindo entrelaçada com memórias da infância e a partir de uma relação afetiva com o Velho Chico.

No dia 19 de março de 1961, Dêniston Diamantino chega ao mundo pelas mãos da parteira Dona Luzia, no município de Manga, no final do ciclo da chuva, em meio ao feriado e à procissão de São José. É o segundo de quatro filhos de Dona Zélia Nepomuceno Fernandes e Seu Laurindo Diamantino. Até os 12 anos, viveu de forma nômade, acompanhando a família nas diversas transferências de trabalho do pai para postos fiscais de Januária, Pirapora, São Francisco e Montes Claros. Já rapaz, fez de Brasília seu pouso durante os tempos de graduação em ciências da computação. Atualmente, vive em Pedro Leopoldo, nos arredores da grande Belo Horizonte.

Apesar da escolha pela ciência da computação, o sonho de fazer cinema jamais desapareceu. Assim, em 1986, usou seu primeiro salário para adquirir uma câmera de vídeo, o que lhe garantiu em numerosas ocasiões passe livre para assistir aos jogos do Atlético no Mineirão, pois era confundido com integrantes das equipes de imprensa que cobriam as partidas. Diamantino conta que, desde menino, era encantado com a sétima arte e que em Manga havia um pequeno cinema que ele costumava frequentar, “desses que a gente tem que levar cadeira se quiser sentar”. Foi lá que ele descobriu o mundo em formato de sonho. Contudo, em um dia trágico, o cinema ardeu em labaredas monumentais. À vista daqueles olhos infantis, a cena mais marcante do incêndio foi o povaréu buscando água em latas no rio São Francisco, na esperança de conter as chamas. Até hoje, o cinema nunca foi reformado. Já adolescente, frequentava assiduamente o Cine Januária que já na época era bem mais estruturado que o de Manga, mas, hoje, também encontra-se fechado. Mais tarde, no cinema em Montes Claros, ele coletava fragmentos de filmes quebrados dos grandes carretéis descartados pelo projecionista. Nesse período, seu imaginário cinematográfico foi fortemente estimulado pela sua mãe, que lhe ajudou a criar em um quarto da casa o Cine Dêniston, uma espécie de projetor em uma caixa de madeira, onde ele montava e projetava aqueles fragmentos de película despejados no lixo. Coincidência ou não, um dia, seu projetor também sucumbiu ao fogo.

Assim, desde 1986, Dêniston usa seus momentos de folga para registrar a relação das comunidades barranqueiras com o rio São Francisco: a história dos primeiros moradores, dos pescadores, dos remeiros, dos coronéis, dos bandeirantes. A exuberância da natureza, as veredas, os afluentes, os córregos, as lagoas. As culturas do entorno, a pesca, as plantações de mandioca, milho, feijão, abóbora, batata, melancia e tantos outros alimentos. A época da chuva e da vazante. O reconhecimento de uma relação de afetividade com o Velho Chico, sendo ele pai e mãe que garante a sobrevivência do povo ribeirinho. “As pessoas tomam a benção do Rio, conversam com ele, são apaixonadas por ele”, ressalta Dêniston, sendo o São Francisco tratado como uma pessoa, um ente querido, um parente. É uma questão forte de identidade, o orgulho de ser barranqueiro está diretamente ligado à naturalidade são-franciscana, como Dêniston mostra no documentário Terras de Januária, de 2016. Logo, sua obra avança para abordar as questões relativas ao Cerrado, à revitalização do rio e à recuperação da memória do povo barranqueiro. O rio que foi, o rio que é, e a diversidade de paisagens que habitam as memórias de seus moradores.

Emídio, remeiro tradicional do rio São Francisco, um dos entrevistados por Dêniston. Foto: Dêniston Diamantino

Atualmente, Diamantino se autointitula um “documentarista cru”, focado em um registro sem muita elaboração estética e interferências, com única intenção de guardar o passado e reconhecer as raízes sertanejas. É uma ideia na cabeça e pé na estrada, a fim de encontrar os personagens de forma inesperada e orgânica. É uma construção sem predefinições, permitindo um mergulho no assunto de interesse com o comando do acaso. “Transportar a realidade de um lugar, de um momento, de um dia, para um outro local, em um outro tempo, lá no futuro, é fascinante!”, relata. É incontestável a sua preocupação com a preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural local, perpetuando histórias, práticas, saberes e celebrações pelas gerações. 

Esse profundo desejo de rememorar o passado vem desde a infância. Bastante apegado aos avós paternos e maternos, Dêniston dedicou horas a fio a sentar e prosear com eles para conhecer suas histórias. Tanto que, em 1986, entrevistou seu avô materno, Seu José Vieira Fernandes, o que lhe serviu de inspiração para a posterior coleta de depoimentos para o documentário Centenários do São Francisco – memórias de um rio, de 2017. “O nosso passado é muito rico e de muito sofrimento para ser esquecido”, diz, demonstrando grande compromisso em trazer à tona temas relevantes da história brasileira que sofrem alto risco de ocultação pela poeira do tempo. E, uma vez esquecidos, acabam invisibilizando as lutas e padecimentos dos povos do território.

Assim, alguns documentários tratam de salvaguardar os saberes, modos de vida e tradições locais. Vila do céu, de 2002, traz o saber ancestral sertanejo, o misticismo e a conexão invisível e indizível com o universal que reverberam na lida cotidiana, na cultura alimentar, na permanência da vida, no sentido de despertar e de crer. Sentinela – rituais fúnebres, de 2003, aborda o embate entre a vida e a morte. O testemunho do evento indecifrável que é morrer, passeando pelas crenças, tradições e louvações. O festejo da tristeza, o estar junto, a demonstração de apreço pelos que se foram e seus familiares. Anunciação parteiras do Brasil, de 2005, conta em versos foliões a chegada de Jesus ao mundo, entremeando-se com a pulsão concreta do viver em vísceras, o poder do corpo sem qualquer suporte do Estado ou da ciência. Trata também da transmissão oral de conhecimentos e do apoio mútuo entre as mulheres no ato milagroso do nascer.

A religiosidade se faz presente em praticamente toda a produção de Diamantino. Os documentários Santos Reis, de 1993, São João na Roça, de 1999, e A vida e a dança de São Gonçalo, de 2001, são bons exemplos do compartilhamento de temáticas de devoção e fé, as relações entre o sagrado e o profano, as superstições e brincadeiras, peregrinações e procissões, os cortejos e folguedos, as celebrações, cantigas e danças. Os alegres terreiros do sertão em festa, alumiados pelas fogueiras e encantamentos. 

A preocupação com a perda das tradições culturais caminha com a denúncia da degradação ambiental e da devastação dos biomas. Em O Futuro a Deus Pertence? e Esperas D’água, ambos de 2017, bem como em Aqui jaz – rios mortos, Diamantino prova como a falta de consciência no cuidado com o meio ambiente interfere diretamente na alteração do estilo de vida das comunidades ribeirinhas. Já em Esperas – caçadas e caçadores no interior do Brasil, de 2019, o diretor acompanhou durante 4 anos caçadores em suas práticas ilegais, denunciando a caçada de tocaia, comumente realizada nos interiores do Brasil. O filme se pretende instrumento para fortalecer a fiscalização e a tomada de medidas preservacionistas da fauna brasileira. 

Dêniston conta que constantemente revolve o passado. Atualmente, dedica-se muito a escrever histórias que talvez nem venham a se tornar filmes, lembranças ligadas à escravidão com passagens do seu bisavô e reminiscências ligadas à vida dos tropeiros na época de maior relevância para coronéis e jagunços. “É da nossa raiz que vem a seiva que nos nutre. É da nossa raiz que vem a resina que nos une. Então, se perdermos o nosso passado, nós ficaremos desunidos”.

Dêniston menciona o livro 1984, escrito por George Orwell em 1948, para aludir à manipulação pública e histórica da sociedade brasileira e ao apagamento de sua memória. Ele ressente-se da falta de registros e de arquivos que documentem satisfatoriamente a história das cidades e povoados que margeiam o Rio São Francisco no norte mineiro. É invadido por angústias devido ao descaso do poder público e à precariedade das condições sociais, ambientais e culturais dos Gerais. Reivindica o reconhecimento do ser geraizeiro, mais do que o ser mineiro, pela inegável importância histórica dos Gerais para o estado. 

Em 2018, a obra Remeiros do São Francisco, de 2015, foi agraciada com o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. O documentário divulga depoimentos colhidos durante 25 anos que remontam à história da navegação no Velho Chico e à fixação do povo são-franciscano na região. Conta a saga dos remeiros e seu árduo trabalho nas longas travessias entre Januária/MG e Juazeiro/PE, nas coxias das barcas de figura, em uma época em que a estrada era o rio e o combustível era a força e a coragem, cantadas por esses navegadores em diversas toadas às margens do Velho Chico.

Capa do DVD de “Remeiros de São Francisco”

A participação no Prêmio foi uma grata surpresa, pois Dêniston jamais acreditou que tinha chance de ganhar. A inscrição no edital foi fortemente incentivada por sua sobrinha Karla Maria Diamantino Lamounier, que tomou a iniciativa de preencher os formulários e de compilar os documentos que comprovavam o mérito do projeto. Esse reconhecimento serviu como confirmação de que tem valido a pena a dedicação de décadas ao registro das tradições das comunidades são-franciscanas do norte mineiro. 

Apesar do prêmio, Dêniston destaca que são raras as ações de fomento, escassas as fontes de financiamento municipais, estaduais e federais e baixo o estímulo ao desenvolvimento de projetos independentes. Segundo ele, se não fosse, de fato, o amor que sente pelo cinema e pela região, certamente teria sido muito difícil continuar. Ele afirma que usou as leis de incentivo em três ou quatro documentários, o restante da filmografia foi feito com cara, coragem, coração e muita obstinação. Em suas palavras, “paria um filme enquanto gestava outro”. E, assim, seu acervo completa 34 anos neste 2020. 

Dêniston relembra um fato curioso que o levou a escolher o nome de sua produtora. Opará, o Rio São Francisco foi o título de seu primeiro documentário. Ele decidiu, então, usar o nome de sua primeira obra para batizar sua produtora. Opará era uma das formas que o Rio São Francisco era chamado antigamente por grupos indígenas que habitavam as suas margens e significa “grandioso”. Antigamente, Dêniston costumava inscrever alguns filmes em festivais, mas, nos últimos anos, decidiu criar um canal no Youtube e um perfil no Facebook onde divulga a produtora, os documentários, trailers e depoimentos, além de extenso material que não foi aproveitado no corte final dos filmes, mas que tem muito valor enquanto registro e salvaguarda da memória barranqueira.

São décadas produzindo em silêncio, anos de documentação com um acervo de enorme relevância não só para a região, mas para o país. Dêniston Diamantino pode ser considerado um guardião do Rio São Francisco, um barranqueiro que, por meio do cinema, assumiu um compromisso socioambiental e educativo de lutar pelo rio vivo. O patamar de degradação está tão alarmante que “apesar do amor que as pessoas sentem pelo rio, isso nem sempre se traduz em cuidado. Ele corre no coração, como o sangue nas veias. Então é preciso transformar o coração em ação. Todo mundo tem que querer salvar o rio”, diz. Nos eventos de que participa, ele sempre reforça a responsabilidade de cuidar do rio e de curá-lo, lembrando o seu valente percurso e apoiando o seguimento do seu curso.

Imagem em destaque: Sílvia Villani


* Isabella Atayde Henrique é relações públicas e produtora cultural. Poeta, fotógrafa, viageira, tradutora, revisora, sambista, brincante, angoleira. Curadora e produtora do CineBaru.

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