Agora o mundo quer ficar sem Sertão…

Quais são os limites de um território quando ele é marcado pela literatura? As geografias coincidem? As histórias ali vividas, seus personagens, são reais e necessários para se compreender a importância do lugar? Um livro dá conta de abordar sentidos universais e simbólicos sem perder o chão da realidade do território onde está baseado?

São inúmeras as passagens do mais importante romance de João Guimarães Rosa descritas na paisagem do Parque Nacional Grande Sertão Veredas e em sua região de abrangência. O verdadeiro cenário está lá, imponente, visível, com sua imensidão de águas e buritizais, seus bichos e plantas, o cerrado vistoso que atrai visitantes de todos os lugares.

No entanto, há outras abordagens importantes. Quando nos deparamos com questões existenciais abordadas no Romance e, conforme ressaltado por Antônio Cândido, um dos mais importantes críticos literários brasileiros, trata-se de uma obra que tem um caráter metafísico: 

Não é uma obra regionalista, pois toca em problemas universais, problemas que atormentam o homem em qualquer parte do universo. Quem sou eu? Quem é você? Deus existe ou não? O diabo existe ou não? O que é o bem? O que é o mal? O culpado é ele ou sou eu? O homem faz o meio ou é fruto do meio? Em Grande Sertão: Veredas a terra não condiciona o homem e o homem não condiciona a luta. Não há relação causal. Os três estão no mesmo plano, tudo está embaralhado. O Sertão é o lugar onde a vontade do homem se fez mais forte que o poder do lugar. O bonito em Grande Sertão: Veredas é a extrema ambiguidade, é fluido, as coisas são e não são, tem o lado do bem e o lado do mal. Todas as vezes que se faz o mal, sem querer, se faz o bem. Isso é um paradoxo, a ambiguidade máxima

Podemos dizer que, olhando para o Parque Nacional Grande Sertão Veredas e para os processos de sua criação e implementação, nos deparamos com muitas ambiguidades. O Parque é bom para o conjunto da sociedade? O Parque é importante para o país como um todo ou as demandas locais importam mais? O homem precisa alterar sua paisagem e modificar o ambiente para sua própria sobrevivência? Existem formas harmônicas de relacionar-se com a natureza? A natureza preservada vale mais ou a sua conversão em usos que a transformam em “áreas produtivas” tem mais valor? A luta pelo Parque é legítima? É justa ou injusta? Constatamos que não há apenas uma resposta para cada uma dessas questões. A ambiguidade é grande e faz parte dos imensos desafios que temos em nossa travessia coletiva.

No romance, um dos principais motivos das batalhas que envolvem os bandos de jagunços, ou entre eles e o Estado – representado pela polícia –, é a disputa pela apropriação da terra. A criação de um Parque tem como objetivo principal garantir que espaços territoriais e seus componentes sejam especialmente protegidos, ou seja, é a disputa pela terra com a finalidade de manter a integridade dos atributos naturais.

Vencida a etapa da criação, passa-se à etapa da implementação que é, também, uma luta constante. Seja na conscientização da sociedade sobre a importância do Parque, na luta pela regularização fundiária, no estabelecimento de consensos sobre o uso da terra nas áreas que ainda não foram desapropriadas ou nas áreas de entorno que exercem influência direta ou indireta sobre o Parque.

Considerando, ainda, que o Parque é parte de um sistema de áreas protegidas conhecido como Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu, composto por outros parques, áreas de proteção ambiental, reservas em geral, terras indígenas, terras de quilombolas, territórios onde vivem outras comunidades tradicionais, terras de fazendeiros agricultores e pecuaristas, constata-se que as lutas não são fáceis, pelo contrário, são árduas e complexas. Nesse contexto, ressalta-se não apenas a importância da preservação da natureza, mas, também, a importância da valorização das tradições culturais presentes na região. E o romance de Guimarães Rosa está repleto delas. Assim, comunidades indígenas e tradicionais, em sua essência, mantêm uma relação harmônica com a natureza e são importantes aliados da sua conservação.

Muitas passagens do Romance são a expressão do que acontece na região do Parque e do Mosaico.

No primeiro contato que tive com a equipe de guardas do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, todos pertencentes às comunidades tradicionais da região, fiquei sabendo dos apelidos que tinham e já me vi dentro daquele mesmo Sertão retratado por Guimarães Rosa: Proza, Pão-de-Queijo, Cofocó, Meleta, Boi Véio, Brechó, Delino, Tião e Sancler. Bem ao estilo dos inúmeros personagens, companheiros de Riobaldo Tatarana no Romance:

(…) nesse figuravam os cinco urucuianos, e eu, Diadorim, Sesfredo, o Quipes, Joaquim Beiju, Coscorão, Dimas Doido, o Acauã, Mão-de-Lixa, Marruaz, o Credo, Marimbondo, Rasga-em-Baixo, Jiribibe e Jõe Bexiguento, dito Alparcatas.(…)**. 

Interessante é que alguns dos meus novos amigos e colegas de trabalho, antes de se tornarem guardas-parques, disseram que eventualmente praticavam a caça ou apanha de animais, especialmente de psitacídeos (periquitos, papagaios, araras e outros), para ter algum “ganho extra”, ou trabalharam para fazendeiros que, em muitos casos, não tinham muita preocupação com o meio ambiente. Com o trabalho no Parque, passaram a compreendê-lo em um contexto mais amplo, tomando para si mesmos a defesa pela conservação da natureza. Aos poucos, percebiam o valor do conhecimento que possuíam por terem nascido e crescido ali mesmo, pois eram parte daquele lugar.

Equipe do Parque Nacional Grande Sertão Veredas no ano de 2019. Foto: Kika Antunes

No romance de Rosa, uma passagem importante mostra a conscientização de Riobaldo estimulada por Reinaldo (Diadorim):

Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. (…) O rio, objeto assim a gente observou, com uma crôa de areia amarela, e uma praia larga: manhãzando, ali estava re-cheio em instância de pássaros. O Reinaldo mesmo chamou minha atenção. O comum: essas garças, enfileirantes, de toda a brancura; o jaburu; o pato-verde, o pato-preto, topetudo; marrequinhos dançantes; martim-pescador; mergulhão; e até uns urubus, com aquele triste preto que mancha. Mas melhor de todos – conforme o Reinaldo disse – o que é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-crôa. (…) Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido falar de se parar apreciando, por puro prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos voos e pousação. Aquilo era para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: – “É formoso próprio…” – ele me ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. P’ra e p’ra, os bandos de patos se cruzavam. – “Vigia como são esses…” Eu olhava e me sossegava mais. O sol dava dentro do rio, as ilhas estando claras. – “É aquele lá: lindo!” Era o manuelzinho-da-crôa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim – a galinholagem deles. – “É preciso olhar para esses com todo carinho…” – o Reinaldo disse. 

Trabalhos junto às comunidades locais são feitos desde a criação do Parque com vistas à sua adequada implementação, seja visando à conscientização sobre a sua importância, seja na definição e implementação de ações que têm como objetivo proteger a sua integridade ou que possam gerar renda de maneira sustentável, ou seja, sem causar impactos ambientais, sociais e culturais. Além de trabalhos mais amenos e prazerosos, como educação ambiental em escolas ou assistência técnica voltada para produção sustentável ou, ainda, apoio a ações de saúde junto às comunidades locais. Há também a parte mais difícil, na qual trava-se diferentes embates, alguns mais simples, que levam ao estabelecimento de acordos com mais facilidade e outros, mais complexos, com grandes dificuldades de se chegar a consensos, muitas vezes gerando conflitos que redundam em graves desentendimentos, ameaças, sanções e até em ações judiciais. São as batalhas dos tempos atuais no Sertão.

Uma das principais questões refere-se à regularização fundiária. O Estado cria o Parque, mas destina pouquíssimos recursos para a indenização das propriedades e benfeitorias já existentes. Depois de 30 anos de sua criação, apenas cerca de 15% do Parque teve a situação fundiária regularizada. Isso é um fator constante de insatisfação e conflito e se repete na maioria das demais unidades de conservação do Mosaico e no restante do Brasil.

Outra questão refere-se ao que se pode ou se deve fazer no entorno do Parque, nas chamadas zonas de amortecimento, nas áreas que funcionam como corredores ecológicos entre as unidades de conservação do Mosaico, e até mesmo dentro daquelas áreas que permitem a exploração sustentável dos recursos, a exemplo das áreas de proteção ambiental (APAs). Se é difícil haver consenso na forma de uso das áreas que ainda não foram indenizadas no interior do Parque, muito mais difícil é haver consenso sobre o uso das áreas privadas que estão fora dos seus limites e que são fundamentais para que os parques não se tornem “ilhas” de espaços naturais cercados por monocultivos e outros usos, onde é comum haver grandes desmatamentos sem planejamento ou sem as licenças ambientais.

Também acontecem outros tipos de impactos ao Parque e demais áreas protegidas do Mosaico, igualmente preocupantes, tais como a caça ilegal, o uso inapropriado ou excessivo de agrotóxicos, as queimadas descontroladas ou a implantação de barragens em rios, que impedem o livre trânsito de peixes. Embate importante na região do Mosaico aconteceu sobre a tentativa de implantação de várias PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) no rio Carinhanha. Felizmente, após a forte mobilização da sociedade civil, contrária aos projetos, eles não tiveram as suas licenças expedidas.

A contraposição a esses impactos é o estímulo às atividades produtivas consideradas amigas do Parque e do Mosaico, como o turismo sustentável em suas diferentes vertentes (ecoturismo, turismo cultural, turismo de base comunitária); o aproveitamento sustentável de produtos do Cerrado, como o baru, o pequi, o buriti e outros; a agropecuária orgânica; a busca pela sustentabilidade na produção voltada para o agronegócio; a valorização das tradições culturais do Sertão. Dessa forma, a obra de Guimarães Rosa torna-se não apenas o registro de uma paisagem e de uma expressão cultural, mas um recurso atual que ajuda a ressignificar a importância do Parque e do Mosaico. 

Aí vem o desafio maior: como podemos agir para que a natureza e seus povos tradicionais sejam preservados dos impactos e agressões da ação humana ainda existentes no Cerrado? A Lei 9.985 de 18/07/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, apresenta a visão sistêmica e diversa fundamental para trabalhar a conservação em suas diferentes gradações e respeitando os pilares da sustentabilidade, ou seja, os fatores ambientais, sociais, culturais e econômicos, indo da proteção integral ao uso sustentável. Daí a importância das diferentes categorias de manejo de unidades de conservação e demais áreas protegidas, os Parques (nacionais, estaduais e municipais), as Áreas de Preservação Ambiental (APAs), as Reservas Biológicas (Rebios), os Refúgios de Vida Silvestre (REVIS), as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), as Terras Indígenas, os Territórios Quilombolas e todas as demais formas de proteção e uso sustentável dos recursos naturais.

A potencialidade para o turismo – em especial o turismo ecocultural (que inclui o viés literário) e o turismo de base comunitária – é imensa. As experiências que já acontecem na região só reforçam isso. Além da possibilidade de se estar em lugares citados no romance, como as paisagens naturais, os rios, fazendas, vilas, cidades, o visitante pode ter contato com comunidades tradicionais, seja para um simples bate-papo com seus moradores, seja para apreciar um café do sertão, um almoço da roça com produtos do cerrado, ou até um pouso familiar em lugar de boa apreciação das estrelas, isso tudo sem falar na possibilidade de ter contato com as diferentes manifestações artísticas, cuja síntese pode ser observada no Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas que acontece sempre no mês de julho no município da Chapada Gaúcha.

Em trabalho para implantação da Estrada-Parque Guimarães Rosa (a estrada que corta o território do Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu margeando o Parque em alguns trechos), feito pela Funatura em 2012, foram levantadas inúmeras localidades descritas no romance que guardam relação com a realidade, como descrições da natureza do Cerrado; o Liso do Sussuarão; o Vão- dos-Buracos; os rios São Francisco, Urucuia, Carinhanha, Ribeirão de Areia, Pardo, Acari, Pandeiros, Peruaçu, Cochá, Bois, Piratinga, entre outros; vilas e cidades como Januária, Serra das Araras, Vargem Bonita e São Francisco, a Fazenda Santa Catarina e a região de Antônio Dó.

Tendo essas referências em mente, fiz uma singela seleção de passagens de Grande Sertão: Veredas, que podem ser “encontradas” na região do Parque e do Mosaico:

“(…). Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção.”

“O senhor tolere, isto é sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por campos- gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda parte.”

“O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; daí o buritizal, de um lado e de outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo.”

(…). De qualquer pano de mato, de de-entre quase encostar de duas folhas, saíam em giro as todas cores de borboletas. Como não se viu, aqui se vê. Porque nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular – cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe: acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme. Beiras nascentes do Urucuia, ali o poví canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revorêdo, o saci-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-vaqueira…e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o môm das vacas devendo seu leite. Mas, passarinho de bilo no desvéu da madrugada, para toda tristeza que o pensamento da gente quer, ele repergunta e finge resposta. Tal, de tarde, o bento-vieira tresvoava, em vai sobre vem sob, rebicando de voo todo bichinhosinho de finas asas; pássaro esperto. Ia dechover mais em mais. Tardinha que enche as árvores de cigarras – então não chove. Assovios que fechavam o dia: o papa-banana, o azujêjo, a garricha-do-brejo, o suiriri, o sabiá-ponga, o grunhatá-do-coqueiro… Eu estava todo tempo quase com Diadorim.”

“Da outra banda do rio, se sucedeu a queima dos campos: quando o vento dava para trás, trazia as tristes fumaças. De noite, o morro se esclarecia, vermelho, asgrava em labaredas e brasas.”

“Tem coisa e cousa, e o ó da raposa. O senhor viu onça: boca de lado e lado, raivável, pelos filhos? Viu bando doido de queixadas se passantes, dando febre no mato? E os veados correndo, entrando e saindo até dos velhos currais de ajuntar gado, em rancharias sem morador? Isso, quando o ermo melhorava de ser só ermo. A chapada era para aqueles casais de antas, que toram trilhas largas no cerradão por aonde, e sem saber de ninguém assopram sua bruta força. Veado, sim, vi muitos: tinha vez que pulavam, num sonhoso, correndo, de corta campo, tanto tantos – uns dois, uns três, uns vinte, em grupos – mateiros e campeiros. …Suaçuapara corria da gente, com a cabeça empinada quase nas costas, protegendo para não prender nas árvores sua galhadura dele. Galheiro suaçupucu com sua fêmea suaçuapara. …Raio de repente, afastaram a erva alta, minha cabeça eu encolhi. Era um tatu, que ia entrando num buraco, fungou e escutei o esfrego de suas muxibas. Tatu-peba e eu no rés dele.”

“Daquele lugar, vazio de moradas e de terras lavradias, a gente ouvia o gugo da juriti como um chamado acabado, junto com lobo-guará já dando gritos de penitência.”

“Gostei de favas do mato, muito murici, quixaba e jaca. O Paspe, que cozinhava, cozinhou para mim os chás: o de macela, o de erva-doce, o de losna. Oi. Dor, mesmo, nenhuma eu não tinha. Somente perrengava. O Garanço se regalava com os pequis, relando devagar nos dentes aquela polpa amarela enjoada. Aceitei não, daquilo não provo: por demais distraído que sou, sempre receei dar nos espinhos, craváveis em língua.”

“Mas pudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Suçuarana, ali se pescou. Todo dia se comia bom peixe novo, pescado fácil: curimatã ou dourado; cozinheiro era o Paspe – fazia pirão com fartura, e dividia a cachaça alta.”

“(…). Assim que desta banda de cá agente tinha padecido de toda resma de reveses; e que soubemos que os judas também tinham atravessado o São Francisco; então nós passamos, viemos procurar o poder de Medeiro Vaz, única esperança que restava. Nos gerais. Ah, buriti cresce e merece é nos gerais! Eu vinha com Diadorim, com Alaripe e com João Vaqueiro mais Jesualdo, e o Fafafa. Aos Buritis-Altos, digo ao senhor – vereda acima – até numa Fazenda Santa Catarina se chegar. (…). Minha Otacília, vou dizer. (…). Ela era risonha e descritiva de bonita: mas, hoje-em-dia, o senhor bem entenderá, nem ficava bem conveniente, me dava pêjo de muito dizer. Minha Otacília, fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença. (…) Aí, falei dos pássaros, que tratavam de seu voar antes do mormaço. Aquela visão dos pássaros, aquele assunto de Deus, Diadorim era quem tinha me ensinado. Principal que eu via era as pombas. No bebedouro, pombas bando. E as verdadeiras, altas, cruzando do mato. – “Ah, já passaram mais de vinte verdadeiras…” – palavras de Otacília, que contava. Essa principiou a nossa conversa. Salvo uns risos e silêncios, a tão. Toda moça é mansa, é branca e delicada. Otacília era a mais.”

“(…) E a Ana Duzuza me disse, vendendo forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a banda o Liso do Sussuarão. Ela estava chegando do arranchado de Medeiro Vaz, que por ele mandada buscar, ele querendo suas profecias. Loucura duma? Para quê? Eu nem acreditei. Eu sabia que estávamos entortando era para a Serra das Araras – revinhar aquelas corujeiras nos bravios de ali além, onde tudo quanto era bandido se escondia – lá se podia azo de combinar mais outros varáveis companheiros. Depois, de arte: que o Liso do Sussuarão não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era um escampo dos infernos. Se é, se? Ah, existe, meu! Eh… Que nem o Vão do Buraco? Ah, não isto é coisa diversa – por diante da contravertência do Preto e do Pardo… Também onde se forma calor de morte – mas em outras condições… A gente ali rói rampa… Ah, o Tabuleiro? Senhor então conhece? Não, esse ocupa é desde a Vereda-da-Vaca-Preta até o Córrego Catolé, cá em baixo, e de em desde a nascença do Peruassú até o rio Cochá, que tira da Várzea da Ema. Depois dos cerradões das mangabeiras…”

“(…) Dali para cá, o senhor vem, começos do Cariranha e do Piratinga filho do Urucuia – que os dois, de dois, se dão as costas. Saem dos mesmos brejos – buritizais enormes. Por lá, sucuri geme. Cada surucuiú do grosso: voa corpo no veado e se enrosca nele, abofa – trinta palmos! Tudo em volta, é um barro colador, que segura até casco de mula, arranca ferradura por ferradura. Com medo de mãe cobra, se vê muito bicho retardar ponderado, paz de hora de poder água beber, esses escondidos atrás das touceiras de buritirana. Mas o sassafrás dá nato, guardando o poço; o que cheira um bom perfume. Jacaré grita, uma duas, as três vezes, rouco roncado. Jacaré choca – olhalhão, crespido do lamal, feio mirando na gente. Eh, ele sabe se engordar. ”

“(…) Por meios e modos, sortimos arranjados animais de montada, arranchamos dias numa fazenda hospitaleira na Vereda do Alegre, e viemos vindo atravessando o Pardo e o Acari, em toda a parte a gente era recebida a bem. Mas vantagem nossa era que todos os moradores pertenciam do nosso lado. Medeiro Vaz não maltratava ninguém sem necessidade justa, não tomava nada a força, nem consentia em desatinos de seus homens. Esbarrávamos em lugar, as pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas, outros presentes.”

“(…) E seguimos o corgo que tira da lagoa Sussuarana, e que recebe o do Jenipapo e a Vereda- do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros – esse tem cachoeiras que cantam, e é d’água tão tinto, que papagaio voa por cima e gritam, sem acordo: – É verde! É azul! É verde! É verde!”

“(…) Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra. Vaqueiros? Ao antes – a um, ao Chapadão do Urucuia – aonde tanto boi berra. Ou o mais longe: vaqueiros do Brejo-Verde e do Córrego do Quebra-Quináus: cavalo deles conversa cochicho – que se diz – para dar sisado conselho ao cavaleiro, quando não tem mais ninguém perto, capaz de escutar. Creio e não creio. Tem coisa e cousa, e o ó da raposa…”

“(…) Viemos pelo Urucuia. Rio meu, de amor é o Urucuia.”

“(…) Tinha o norte para a gente. Dei ordem. Aí torcemos caminho, numa poeira danã. A reto, viemos beirando o Ribeirão da Areia, de rota abatida.”

“(…) Antônio Dó eu conheci, certa vez, na Vargem Bonita, tinha uma feirinha lá, ele se chegou, com uns seus cabras, formaram grupos calados, arredados. Andalécio foi meu bom amigo. Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão. Acaba?”

“(…) na grande cidade de Januária, onde eu queria comparecer, mas sem glórias de guerra nenhuma, nem acompanhamentos. Alembrado de que no hotel e nas casas de família, na Januária, se usa toalha pequena de se enxugar os pés; e se conversa bem. Desejei foi conhecer o pessoal sensato, eu no meio, uns em seus pagáveis trabalhos, outros em descanso comedido, o povo morador. A passeata das bonitas moças morenas, tão socialmente, alguma delas com os cabelos mais pretos rebrilhados, cheirando a óleo de umbuzeiro, uma flor airada enfeitando o espírito daqueles cabelos certos. À Januária eu ia, mais Diadorim, ver o vapor chegar com apito, a gente esperando toda no porto. Ali, o tempo, a rapaziada suava, cuidando nos alambiques, como perfeito se faz. Assim, essas cachaças – a vinte-e-seis cheirosa – tomando gosto e cor queimada, nas grandes dornas de umburana.”

As abordagens existenciais e filosóficas feitas por Guimarães Rosa caracterizam a importância universal do Romance Grande Sertão: Veredas e a rica relação da obra com o Parque e o Mosaico confere a ambos um grau de importância ímpar para a humanidade e para o planeta. O território do Grande Sertão Veredas é o que podemos chamar de um verdadeiro patrimônio natural e cultural da humanidade.

¹ Entrevista disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=nn9YMb6S7VQ. Acesso em: 01/09/2020.

** Todas as citações de Guimarães Rosa foram extraídas de Grande sertão: veredas. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2001. 19ª edição.

Imagem em destaque: Mariana Cabral


* Cesar Victor do Espírito Santo é engenheiro Florestal. Ex-Superintendente Executivo da Fundação Pró-Natureza – Funatura.

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