Neste sertão de Cerrado, morada de berço d´água, árvores tortas e medicinais, existe um mundo próprio criado pela coletividade das mãos de muitas mulheres. Um mundo de várias, num mundo de linhas. Mulheres de linhas. Um tissume de narrativas femininas sertanejas alinhavadas por cantorias, prosas, risadas e pelas sonoridades da roda, do tear, da carda, do escaroçador, da água para o tingimento, do algodão tirado do pé… Criando, assim, um modo de (re)existirem como mulheres sertanejas.
Nesse emaranhado, o desejo de criar pelas mãos, pois viram em suas linhas uma vida grande por demais, em uma sensibilidade que lhes é própria. Suas mãos estão sempre prontas para criar. Na alegria de ver o algodão se transformando na roda, na satisfação em ver o tecido se desenhando no tear, no colorido do olhar ao caminhar entre plantas do Cerrado e ver o tingimento se dispor para as linhas. E como criaram e criam!
Fiadera é a que cria linha na roda. Linhas pra tecê. As que repassa as linhas fiadas a gente chama de tecedera. A gente faz colcha, manta no tear.
Vejo no Cerrado o colorido para tingir as linhas. Bordadera traz um colorido pros tecido. Desenha o Cerrado nos tecido também.
Com a mesma habilidade com que manipulam suas linhas fiadas, urdidas e tecidas, elas criaram seus mutirões, no encontro com outras comadres, mães, avós, meninas. A criação retorce a condição do trabalho doméstico feminino, o “ser prendado”, reinventando em um novo pedaço de pano o seu corpo de linhas. Enquanto isso, uma grande quantidade de tecidos, linhas e peças ganham forma, suprindo a necessidade da família e da comunidade.
Minhas amigas fiadera
Começou a cantoria
Vamos todas desafiar
Até o final do dia
Diante de toda essa expressividade, não é de se estranhar que no Brasil Colônia houvesse um alvará ditado por Portugal que proibia a fiação, tecelagem e o bordado em Minas Gerais. Isso porque tais atividades estavam provocando uma independência brasileira das importações de tecido da Inglaterra, de quem Portugal dependia militarmente para sua proteção. As criações das mulheres mineiras eram algo grande demais para uma colônia, criando uma situação crítica para a metrópole.
O que Portugal, Inglaterra e os governantes das capitanias não sabiam é que o mundo das linhas se reinventa por meio das mãos habilidosas de fiandeiras, tecelãs, tingideiras e bordadeiras, sendo assim impossível de ser extinto. Vivendo em meio à clandestinidade, essas mulheres fizeram surgir linhas e criações manuais de lugares não imaginados. Hoje podemos ver nas rodas sertão adentro uma linha que liga e religa essa vida feita à mão, numa capacidade de superação que não as paralisa em situações extremas ou agudas.
Fia fiadeira
Quero ver você fiar
Fia lá que eu Fio cá
Quero ver você fiar
Nesse tissume de histórias, a ludicidade tem seu espaço. Não só porque as crianças estão sempre às voltas – ora bordando, descaroçando e cardando o algodão e enrolando novelo, ora bagunçando a organização das linhas – mas também porque no encontro dessas mulheres a vida se expressa também na forma de brincadeiras. Sejam jovens, meninas ou mulheres bem velhas, elas desmancham o bordado de uma; lançam verso de improviso para a lentidão da cardeira; trocam o repasso da que está tecendo. Inventam histórias para a que sempre acredita em tudo que se fala ou para a que gosta mais de uma fofoca. Nesse clima, a vida se tece com graça.
Independente da idade, nesse reduto feminino, as mulheres compartilham “coisas da vida, ué”. E assim elas riem. As risadas aos poucos tornam-se gargalhadas que balançam os seios, mostram os dentes e soltam o corpo. Seus corpos. “Mostremos o que temos antes que murchemos”. Um tipo de conversa que não se tem na frente dos homens. Não que o homem não seja bem-vindo nos encontros de criação das linhas ou que sua presença não seja importante na vida dessas mulheres. Mas na lida coletiva da tecelagem elas criam oportunidades de estar entre mulheres, na cumplicidade de poder compartilhar suas histórias. Não por acaso, muitas delas gostam da cor vermelha. “O sertão é colorido” – diz uma delas – “e eu adoro um vermelho cabaré”. E lá vem de novo a risada.
As panelas lá de casa
Estão fervendo numa lida
Uma de boca pra baixo
Outra de boca pra riba
No tempo e espaço da fiação, como traz a querida amiga Dinalva Ribeiro em seu filme Conversa Fiada, essas mulheres sábias lapidam seus conhecimentos, suas práticas sobre as ervas, os medicamentos, as hortas, os alimentos, o cuidar das filhas e dos filhos, as paixões. E mais ainda, no encontro, tecem suas reflexões sobre seus corpos, seus ciclos, seus partos, os cuidados de si e das companheiras, transformando o trabalho em potência afetiva e criativa.
E, assim, essas mulheres das linhas continuam criando e reinventando esse saber tradicional tanto no meio rural quanto nas cidades. Encontrá-las hoje, atualizando sua tradição em associações de artesanato ou em suas casas, para seu próprio uso ou comércio caseiro, é nos propor a fiar, tecer, tingir e bordar um “entre” no passado e presente. Um encontro com a tecedura local, povoada de movimentos, gestos, cantorias, afetos, histórias e paisagens.
Lá no pé daquela serra
Está formando cachoeira
Tem tapete de algodão
Lembrança de fiadeira
Ao sair do espaço do tissume, essas mulheres fiandeiras, tecelãs, tingideiras, encontram-se novamente com a trama complexa de suas existências como mulheres sertanejas. Mas confiar na coletividade das linhas feita à mão amortece essa experiência. E aqui são muitas que escrevem. Conceição, Marieta, Ladyjane, Lita, Neide, Gercina, Raimunda, Inhana, Lindalva, Nair, Maria Barbosa, Ana, Fátima, Eva, Evangelina, Glória, Celenita, Lena, Lauzina, Lázara, Simone, Ledina, Maria Braga, Marta, Maria, Geralda, Cirila, Petronilia, Nora, Solange, Virgínia, Rosa, Judite, Arcanja, Rosenilda, Isidora, Paulina… Um mundo de várias, um mundo de linhas.
Percorrendo o fio de uma canção escutada lá adiante, saí na busca de fazer uma dança cantar. As vozes femininas dos cantos de festejo de fiação e folia de reis me levaram a conhecer suas mulheres fiandeiras, tecelãs, tingideiras e bordadeiras. E ali, tão logo, uma dança seria criada a partir do contato com essas cantigas. Com pés de caminhante, fui me vestindo de veredas e voos de araras vermelhas em tecedura fiada pelas mãos das mulheres de linhas de Sagarana, de Uruana de Minas, de Riachinho, de Natalândia, de Bonfinópolis, de Serra das Araras, de Ribeirão de Areia. E a cada canto apreendido no corpo apreendi também as histórias, os saberes e os fazeres característicos do universo feminino cerratense. Cantando e contando suas histórias entre o cotidiano da casa, os afazeres junto à terra e os festejos de mutirão e de folia de reis, essas mulheres tecem linhas e vidas numa relação imbricada com a paisagem, onde o outro é também a paisagem, os bichos, o vento, o sol, a chuva… a linha, o tecido, a agulha, a roda, o tear… Assim nasce a videodança Mulheres de Linhas.
Imagem em destaque: Mariana Cabral
* Maria Fernanda Miranda é artista e pesquisadora da dança, mãe, ativista pelo Cerrado e pelos saberes das mulheres e das crianças cerratenses.