Quintais de bem-viver

Os quintais sertanejos misturam-se ao seu entorno no Cerrado, sendo um extensão do outro. Nos quintais, cultivam-se ervas medicinais, flores, hortas e pomares de frutos do próprio bioma. Também é ali que se pisa e molda o barro em mutirão, onde são assados os bolos e biscoitos para a Festa de Reis, onde os cantadores preparam juntos a folia que anuncia e relembra os dons recebidos pela fé. Quase sempre é pelos quintais que se chega à casa dos amigos mais próximos. Signo de intimidade e de generosidade, é o lugar em que se compartilha o alimento, as mudas de plantas, as receitas de remédios naturais, as loas contadas e cantadas em versos.

Onde termina o quintal e começa o Cerrado não existe marcação certa, sobretudo quando as pessoas sabem manejar plantios em consonância com a conservação de minas d´água e veredas, onde os insetos e pássaros encontram alimento e se pode ver os sinais da natureza anunciando a chegada das chuvas, sabedoria sertaneja de quem não se distanciou da íntima relação com seu entorno.

Durante a pandemia da covid-19, os quintais se tornaram ainda mais importantes com as escolas fechadas e as famílias tendo que permanecer dentro dos espaços comunitários locais, sem muita mobilidade para frequentar outros lugares. Foi entre quintais que a vida seguiu sendo provida de alimentos, remédios, brincadeiras, cuidados e companhia. Foi nas trocas entre vizinhos que se buscou não deixar ninguém desamparado. E foi pelas mãos de mulheres que bordam, sovam, modelam, plantam, escrevem, desenham, mas, sobretudo, que fazem crescer belezas, que saímos para conhecer os quintais-cerrado.

Quintal-cerrado na comunidade Buracos. Foto: Maria Ribeiro

Alívio na alma

De manhã cedinho, a chuva fina esticava o sono. Riobaldo vai passear de barco mais Diadorim. Na Serra das Araras, Maria Rosecley bordou no pano um arco-íris.

“É porque Riobaldo tava imaginando bem assim: ah, se Diadorim passar debaixo do arco-íris e virar mulher…”.

Na roda de bordadeiras daquela manhã, o risco de bordado que Rose criou é uma cena de Grande Sertão: Veredas. Uma Diadorim branca e um Riobaldo negro passeiam de barco sob o arco-íris enquanto as mulheres bordam.

No quintal da Casa de Cultura, a mulherada da Serra se reúne há alguns anos para aprender ou reaprender o ofício do bordado. Uma a uma, vão contando o que o bordado representa: distração para a cabeça, alívio na alma, uma vida toda. Para Cida, os pontos vão além: “o bordado representa pra mim o amor da mãe que eu nunca tive. Eu procuro dar o que eu não tive pros meus filhos e pro meu bordado. Os traços representam esse afeto, esse zelo”.

Tudo isso cabe no bordado: “é que quando a gente borda — explica Rose — a gente expressa o que tá dentro do coração, os sentimentos, e aí a gente borda tudo, os medos, os desejos secretos, tudo isso a gente vai colocando no pano”. Os riscos vão ganhando cor e forma no pano, enquanto lembram das avós, das músicas, de suas próprias histórias. “Eu já passei muita luta nesse mundo de Deus, aí hoje eu procuro fazer tudo que eu faço com muito carinho, com muita atenção. Eu amo bordar, de coração. Eu trato as linhas como se fosse um filho, você tem que dar atenção a cada flor, cada folha, cada detalhe do desenho”, explica Cida.

A chuva cai mais forte, faz até um friozinho. Vem o café para adoçar a prosa. A conversa vai dando ponto no ritmo das linhas e a passarinhada invade o quintal fazendo arruaça. E é com água do riacho correndo ao fundo que mais uma roda de bordados se junta de manhãzinha no Ribeirão de Areia. “Chega, Dona Lia, pra bater uma prosa com nós”, convida uma delas. É na casa de Lady o encontro: “eu faço muita coisa, mas uma coisa que é minha mesmo, que é da minha casa, é o bordado… A gente vive de trocas. O carinho é uma troca, o afeto é uma troca, a conversa é uma troca, porque quando a gente conversa com o outro nos faz bem”.

Enquanto cruzam as linhas, prosa e bordado vão ganhando forma. As flores, buritis e frases começam a despontar coloridas nos bastidores. Lady tira as ideias de risco da internet, do livro Grande Sertão: Veredas e outras ela mesma cria: “esse aqui eu fiz o buriti como o oráculo do sertão”. Ao que Diana arremata mais um ponto: “tá parecendo o Santíssimo esse buriti, comadre”, com o que todas concordaram e caíram no riso. Da gente pro pano, do pano pra mente, segue o alinhavo direto ao coração.

Quintal festivo na comunidade do Onça. Foto: Maria Ribeiro

Meu quintal é minha reserva

Logo cedo, é Dona Vera quem visita o quintal de Dona Lili levando uma muda de barba de Noé para ofertar. Toda feliz, Dona Lili vai apresentando cada uma de suas plantas, como se apresentasse um membro querido da família, alguém que conhece muito bem. “Minhas plantas são a família que eu tenho de perto.”

São muitas as mulheres sertanejas que, como elas, guardam a sabedoria do plantar, cultivar e usar as plantas para curar corpo e alma, conservando em seus quintais a riqueza natural do Cerrado.

“Quem me ajuda a viver é a minha reserva”, diz Dona Lili, ampliando os sentidos daquele lugar que existe para preservar as espécies que ela planta, mas também para serem compartilhadas. Tem folha santa, quebra-pedra, abacate, alfazema, São Salvador, boldo chinês, mastruz, trançagem, tudo cultivado para curar e para servir. “Qualquer um que precisar é só pedir.” 

Da palma, que é boa para esporão no pé, Dona Vera dá a receita: “põe o seu pé em cima, corta no formato do pé, tipo uma sandália, e pendura a folha. Diz que a dor sai tudo”. No desafio dos saberes, Lili acrescenta: “que eu conheço, você escreve seu nome, sua data de nascimento na sandália de palma e joga no mato. É uma simpatia, mas hoje é poucos que têm fé”.

Planta também é beleza. Tem pé de pato, que também se conhece por cupião. Tem brinco de princesa, que o povo trata por Josefina. Tem até planta que chama dinheiro em penca, que há quem chame de cabelo ruim, mas não é boa nem pro bolso, nem pro cabelo, e sim pra alergia. Alfazema também é conhecida como Jurema. Seja a casca ou a folha, é boa pra pressão alta e para tomar banho de cheiro: “quando dá aquele ventão das primeiras águas, que o vento roda, mas ela dá um cheiro de alcanfor, merirmã”, lembra Dona Lili.

Dona Vera e Dona Lili compartilham mudas e receitas de remédios a base de plantas. Foto: Lucas Emanuel

Quintais de Barro

Já nas bandas do Peruaçu, onde as comunidades tradicionais resistem há mais de um século, são as mulheres que carregam o saber ancestral de encontrar a veia de terra boa e transformar, como a si mesmas, o barro macio em beleza firme.

Na Olaria do Candeal, em Cônego Marinho, as mulheres partilham entre si o conhecimento da arte com o barro e trabalham juntas, desde a gestão do negócio até o acabamento das peças. Elas arrancam o barro da terra, pisam, peneiram e amassam para modelar e assar as peças. Mas é nas etapas mais delicadas que as mãos fortes de mulher se enternecem, moldando formas e desenhando miudezas.

“O artesanato é a história do local, representa a história da comunidade. É o símbolo das mulheres; as pessoas veem as peças e sabem que é do Candeal. A gente pinta usando tauá, uma tinta de argila que a gente arranca também, retirado na natureza. Já vem da tradição mesmo, passado de geração em geração”, explica Dona Nilda.

As veias da terra se abrem para as mulheres do Candeal. E elas dão de volta tudo o que recebem, partilhando o saber que faz da terra fonte de renda e cultura: “pra mim é um grande amor, é meu prazer começar a modelar aquela peça. A gente sente uma grande alegria sabendo que aquilo é de tantos e tantos anos. O importante pra nós é manter a tradição. Eu tenho medo de que um dia isso possa acabar. Mas para todas as pessoas que quiserem aprender, a gente quer ensinar”.

Alimentar a festa

Ainda ali, nos quintais de Ribeirão de Areia, mãos preparam bolos e biscoitos utilizando a riqueza alimentar do Cerrado. Reunidas, as mulheres preparam as receitas que aprenderam com as mães para alimentar os foliões que chegam nos dias de Reis. Muito antes das festas começarem, o quintal já é pura festa. Tem gente reunida dividindo alegrias e saberes, preparando com afeto comida boa para partilhar.

Vani é fazedeira de biscoito do PNAE, o Programa Nacional de Alimentação Escolar. O povo fala que o nome bonito, mais chique, é cozinheira ou empreendedora. Mas Vani prefere fazedeira de biscoito mesmo, porque assim ela evidencia as duas coisas mais importantes desse trabalho: o ofício do fazer, amassar, enrolar e assar; e o resultado de tudo isso: biscoito bom e gostoso, com sabor de infância, lembrança de mãe e cheiro de cozinha do Sertão que as crianças e jovens nas escolas vão poder comer: “aprendi fazer biscoito com minha mãe, nunca fiz nenhum curso de biscoito nem nada. É de geração pra geração que sei fazer um pão de queijo, sei fazer um quebrador, sei fazer a peta e biscoito de doce que eu entrego nas escolas”.

Quintal festivo na comunidade do Onça. Foto: Maria Ribeiro

Tudo na cozinha tem um segredo. Quando Dona Terezinha ensina as mulheres a fazer bolo de massa de mandioca, vai entregando pouco a pouco os seus. Dois quilos de massa de mandioca, duas medidas de coco, açúcar, leite e queijo. Dessa vez vão cinco ovos, porque nem todos são caipira. A medida da receita é o olho e a experiência. O bolo de massa de mandioca não leva fermento nem farinha: “eu faço ele é natural”. Dona Terezinha aprendeu com a mãe a receita que agora ensina às companheiras. Conversa vai, lembrança vem, e a receita do bolo de mandioca rende 3 formas, das modernas.

De longe também se ama

O cheiro de bolo e biscoito assados no forno de barro se espalha para longe com o vento de chuva. É assim que se anuncia festa no Sertão. Durante a pandemia,

nesses tempos de quetaí, foi nos quintais que pudemos tocar rabeca e sanfona, dançar debaixo do pé de baru, cantar as rezas de trabalho, reunir com segurança a família para fazer fogueira e alimentar nosso desejo pelas festas que não puderam acontecer.

Depois de um dia inteirinho amassando e enrolando biscoito, logo a chuva vai chegando e Dona Pretinha se apressa: “pressa Terezinha, não perde hora não, anda ligeiro pra nóis ir embora. A chuva já tá trovejando e a vereda tá enchendo”; “Mas é que todo biscoito demora, Dona Pretinha, e a gente tem que respeitar o tempo deles.” Na cozinha e na vida, nos ensinam essas mulheres, é preciso respeitar o tempo de cada coisa.

No tempo em que não podíamos mais sair de casa, para conter uma doença que se espalhou pelo mundo, tivemos que aprender a viver distanciados. Os dias se multiplicaram com a gente dentro de casa. Mas, no Sertão, o quintal foi o lugar de respiro, de suspiro, uma forma de estar e viver. Como seria o nosso dia, nesses tempos tão difíceis, sem um pedaço de chão para pisar, uma planta para observar, sem receber o sol direto no rosto?

Tivemos que aprender a matar saudade pelas telas, abraçar quem a gente ama por telefone e até fazer folia e batuque sem a comunidade reunida. Pela internet, os foliões Bastião e Luizim, direto do quintal na comunidade de Ribeirão de Areias, tocaram rabeca e sanfona, acompanhados dos meninos e da dança-poesia de Lady. Do Ponto de Cultura, Seu Duchim, caixa, flauta, viola e pandeiro ecoaram ao vivo pelo YouTube, levando as cantigas sertanejas de roda para outros quintais. Dançamos, cantamos, fizemos versos, assim como acontece nas comunidades. Juntos, foliões, musicistas e dançadeiras fizeram a música chegar àqueles que estão em casa sentindo falta da Folia de Reis, com saudades de dançar uma sussa.

Bordado de Rose com cena do Grande Sertão: Veredas, em Serra das Araras. Foto: Diana Campos

Os quintais celebraram a vida que resiste, celebraram a cultura do Cerrado e do povo de pé. É a certeza de que existe uma força maior regendo o mundo desafinado. É por isso que temos força para celebrar, para mostrar que a cultura está viva no Cerrado, e que ela pulsa nos quintais.

Encontro de gerações, de homens e mulheres, de comunidades inteiras que festejam a vida, os quintais nos convidaram a assentar no tempo de agora, a olhar nossas casas como lugar de valor, de infinitas possibilidades e encontros. Encontro com nossos dons, nosso trabalho, nossas origens, nossa família, encontro com o outro e com nós mesmos, para nos abrir, desabrochar e florescer nos quintais de dentro e de fora.

Nota: O projeto Quintais Cerrado foi realizado pelo Instituto Rosa e Sertão a partir dos microprojetos do Ponto de Cultura Seu Duchim, com recursos da Lei Aldir Blanc em Minas Gerais. Dele nasceram os quintais festivos, musicais, literários, de barro e floridos, iniciativas para fortalecimento dos territórios rurais do Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu. ∞


*Raíra Saloméa é jornalista, pesquisadora na UFMG, escreve para o Instituto Tekoá e Rosa e Sertão.

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