Nossa sala de cinema é o barranco

“A fita, Baé! A fita, Baé!” Era o coro ouvido quando se passava na rua Manoel Caetano durante os quase 30 anos que Baé foi projetista do Cine Januária. Mas antes disso, em Januária, já havia filmes sendo exibidos. Referência no Sertão Gerais do Norte de Minas por ter um porto do rio São Francisco, a cidade recebia um intenso fluxo de comércio e viajantes. Com esse movimento, havia também intensa uma vida cultural que incluía bares, apresentações de música e exibição cinematográfica. Esse cinema em que Baé trabalhou foi inaugurado na década de 50, depois de anos de construção. É ainda hoje um prédio simbólico da cidade e pertence à Associação Sociedade Operária Beneficente de Januária. Embora esteja fechado há muitos anos, quem passa por essa rua ainda fica admirando a edificação, seja os que viveram essa época áurea, seja quem é curioso em saber o que funcionava ali.

O cinema tem história por aqui, porém pouco se sabe disso. Além da falta de valorização, não houve um projeto de conservação oficial dessa memória. Nós, do Coletivo Cine Barranco, somos dessa geração de curiosos. Não vivemos o tempo em que havia um cinema em nossa cidade. Mas, desde crianças, ouvimos histórias sobre como era Januária quando o Cine concentrava atividades diversas em torno de si. Não eram só os filmes. Shows como o “Divertimentos em Cinemascope” e apresentações de teatro também agitavam a cena cultural, ou simplesmente o fato de ir ao “Cine Bar” para encontrar os amigos, comer um salgado e trocar gibis. Tudo isso permanece vivo na memória de quem frequentou o Cine Januária. Com o desejo de acessar mais histórias como essas, nos mobilizamos para realizar um filme documentário a fim de registrar e perpetuar no tempo e em linguagem audiovisual essas lembranças pessoais e coletivas.

Fachada do antigo Cine Januária, em Januária/MG. Acervo Cine Barranco.

“Quando me dei por gente, eu estava aqui no Cine Januária”, conta Vicente Bastos, filho do Baé. “Eu devia ter uns 6 anos de idade, por volta de 1967, eu já era alfabetizado e os filmes eram legendados, quem não soubesse ler só via as figuras e tentava entender o que estava acontecendo”, relembra. Por ser o caçula, ele acompanhava o pai nas sessões. Os filmes de faroeste eram os que mais lhe emocionavam. “Quando o filme era com Giuliano Gemma, eram três dias de sessões lotadas e as pessoas vibravam como se fosse um estádio comemorando um gol”. Como o garoto Salvatore no clássico italiano Cinema Paradiso (1988), Vi- cente passava horas encantado em ver o pai manuseando as fitas e películas, mas não seguiu a profissão. Baé dizia ser muito exaustivo trabalhar todas as noites, lidando com um público por muitas vezes impaciente.

Nesse tempo, o acesso a Januária se dava majoritariamente pelo rio São Francisco. Assim, os rolos de fitas que eram trazidos de Montes Claros vinham pela balsa e, como as estradas de terra eram ruins, por vezes atrasavam para chegar à rodoviária. Vicente lembra também que Seu Galdino, outro funcionário memorável do Cine, era quem ia buscar os filmes quando já estavam na cidade. Ele fazia o transporte do material em um carrinho de mão atravessando a região do centro. Depois do trajeto todo, e por já terem rodado em muitos cinemas, as fitas estavam sensíveis e era comum quebrarem durante a sessão. Era nessas horas que o nome de Baé ecoava ouvido do lado de fora: “Olha o som, Baé!”,“Quebrou de novo”, “Quero meu dinheiro de volta”. Ele ficava nervoso, descia até o Cine Bar, que ficava em frente ao cinema, e tomava uma pinguinha. Depois voltava e consertava a fita, como conta o filho.

Durante nossa pesquisa, queríamos acessar as memórias marcantes sobre o Cine, das mais variadas vivências. Então, realizamos uma intervenção em praça pública, pois existe lugar mais democrático do que uma praça? “Vamos sair daqui! Os cavalos vão pisar na gente!”, gritou a avó do marido de dona Maria Geralda em 1975, quando foi ao cinema pela primeira vez. Essa reação de espanto ao ver imagens tão reais foi exatamente a mesma das pessoas que assistiram A chegada do trem na estação, dos Irmãos Lumiére, em 1896, ainda no início do desenvolvimento das técnicas cinematográficas. Além de Dona Geralda, outras pessoas quiseram conversar conosco. Ouvimos causos sobre crianças que queriam entrar, mas, sem dinheiro para o ingresso, passavam por baixo da catraca depois do início do filme. Casais que se encontravam escondido dos pais. Filas enormes que rodavam quarteirões, lançamentos aguardados com ansiedade e o emblemático cavalete com os cartazes que era colocado nessa mesma praça.

Registrar o Cine Januária é um exercício contemporâneo e necessário. Além do registro em si, nosso desejo foi criar um espaço de reflexão sobre o fato de termos um cinema e ele estar fechado. Nas diferentes ações que propusemos durante a realização do filme, vimos o quanto o olhar da cidade ainda brilha em relação a esse patrimônio arquitetônico e cultural. Muitos de nós nunca tivemos a experiência de ver um filme na telona. É o caso de Karla Vaniely, roteirista e realizadora da equipe do Cine Barranco, que se apaixonou pelo cinema mesmo sem nunca ter pisado dentro de um. Aos 15 anos, Karla ficou curiosa com a indicação de um youtuber sobre o filme Psicose. Não teve dúvidas: pegou a bicicleta e foi à banquinha do rapaz que queimava DVDs pedir o clássico de Alfred Hitchcock. O homem não entendeu nada. “Ele perguntou: ‘Esse filme antigo pra caramba?’”, ela relembra. “Mas foi aí que eu entendi que os filmes antigos eram clássicos e me apaixonei”. Depois disso, o moço teve trabalho para achar os filmes de Kubrick, Woody Allen e Truffaut, que a adolescente vinha toda semana pedir.

Cinema no sertão

O Cine Barranco surgiu em 2019 com a ideia de democratizar o acesso à sétima arte em nossa região. O sonho de reativar a atividade cinematográfica em Januária renasceu para nós em formato de cineclube. Depois de muita articulação e do encontro com pessoas e instituições parceiras, a primeira sessão aconteceu em janeiro de 2020. O filme escolhido para a noite enluarada e quente foi Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, exibido no quintal do Centro de Artesanato da Região de Januária, que é nossa casa. Logo após algumas sessões, veio a pandemia da Covid-19 e tivemos que guardar as esteiras, recolher os bancos de buriti e desligar o projetor. Desde então nos perguntamos como popularizar o acesso ao cinema em um cenário de isolamento social, já que o fazer artístico precisa do encontro de pessoas e que nem todos têm acesso à internet de qualidade. A partir daí, surgiu em nós o desejo de produção. Por que não produzir filmes e documentários sobre o que acontece aqui? E assim, com o apoio do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, o BDMG Cultural, conseguimos viabilizar nosso desejo de fazer um filme: Cine Januária, o cinema no sertão.

Os integrantes do Coletivo Cine Barranco: Da esquerda
para a direta, Gley, Karla, Samylla, Nan, Maria Clara e Luane. Foto: Acervo Cine Barranco.

Para nós, pensar o cinema no Sertão é pensar em um dispositivo que nos faça olhar para o nosso quintal, ressaltando aos olhos os nossos modos de saber e fazer, os jeitos que as relações sociais existem e são postas por aqui, a conservação das nossas paisagens, além das nossas manifestações culturais. É pensar em um cinema cantado, dançado, narrado e em poesia, que retrata o modo de ser e conviver do povo sertanejo em equilíbrio com todos os seres, do urbano ao rural, do ser racional ao irracional, da gente e da terra. É importante que essa cultura seja representada em narrativas construídas por seus viventes, que o acesso ao cinema seja não só às produções já realizadas, mas também à linguagem e à técnica, para que as pessoas possam se valer das ferramentas audiovisuais para se expressarem, afirmarem suas identidades, serem profissionais da indústria criativa do audiovisual e contarem suas próprias histórias a partir de suas referências de vida.

Ao longo dessa ainda breve, mas promissora, existência do Cine Barranco, muitas energias nos acompanharam. Somos gratos por todas as pessoas que acreditaram e que seguem junto contribuindo em cada etapa desse sonho. Atualmente, contamos com uma equipe de sete membros e nossa rede de contatos e comunicação tem se expandido muito. Pessoas daqui e de cidades vizinhas ficam sabendo das nossas ações e compartilham a admiração e o desejo de construir juntos. Além do documentário sobre o Cine Januária, temos produzido bastante nesse pouco tempo. Talhando o rio, dirigido por Gleydson Mota, e Revivendo com bonecas, dirigido por Karla Vaniely, competiram em mostras on-line dentro e fora de Minas. Outras obras estão sendo finalizadas, como Ver o rio, de Maria Clara Almeida, a série documental A Luz, de Gleydson Mota e a série ficcional Conexões não-táteis”, de Will Miller. Em todas elas, fomos nós que captamos, montamos e finalizamos. Em paralelo a isso tudo, realizamos formações com oficinas de audiovisual, cinematografia e técnicas de entrevista. 

Nós acreditamos que juntos podemos viabilizar realizações audiovisuais e incentivar que as narrativas dos nossos sejam contadas e reverberadas para além de onde as telas dos cinemas alcançarem. Temos a oportunidade de ver isso acontecendo na prática com a produção sobre o Cine Januária. O cinema é um local onde a vida acontece. A proposta do Cine Barranco é justamente reivindicar que esse lugar volte a existir em Januária. Seria ainda mais incrível se fosse no prédio que foi palco de acontecimentos memoráveis por tantas décadas. Para nós, fazer um filme sobre o cinema é convidar as pessoas a ocupar esse lugar, para que ele permaneça não somente como registro, documento ou memória de um tempo que passou. Esse patrimônio existe e está vivo, acompanhando as transformações do tempo, das pessoas, da sociedade e assim deve ser preservado. Nosso sonho segue crescendo a cada dia e a cada encontro com pessoas que acreditam que o Sertão pode virar cinema. ∞


* O Coletivo Cine Barranco é composto por: Ernane Silva (Nan Ferresi), estudante de rádio, TV e internet, produtor audiovisual, roedor de pequi com farinha e sensível às causas sociais e ambientais; Gleydson Mota, economista, produtor cultural barranqueiro e cineasta; Ivanilde Moreira (Nega); Karla Vaniely, cineasta, roteirista e cinéfila; Luane Gomes, fotógrafa, ilustradora e cineasta; Maria Clara Almeida, realizadora audiovisual, cineclubista e oficineira; Sâmylla Alves, cientista social, ATER, artesã, amante da cultura dos povos tradicionais.

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