Tecendo história Xakriabá

Nosso presente está no futuro, mas nosso futuro também se faz presente em nosso passado

O que marca a nossa história como constante aprendiz é a Argila, Jenipapo e o Giz. Tece a nossa trajetória, inspirado na raiz. No representar das cores, no entoar da oralidade, vamos moldando a nossa história com culturalidade.

Conhecer a história e a cultura indígena nos dá a oportunidade de relacionar, diante das diferenças étnicas, culturais e linguísticas, aceitação positiva da diversidade, respeito mútuo, busca de consenso e, ao mesmo tempo, reconhecimento e aceitação do dissenso. Isso é, sem dúvida, o caminho para a intraculturalidade: perceber a cultura do outro não apenas como um verniz, mas se permitir conhecer com relações compenetradas.

Sou membro do Povo Indígena Xakriabá, comunidade localizada no norte do estado de Minas Gerais. Nascida em 10 de maio de 1989, sou filha de um importante mobilizador militante do movimento indígena, animador dos jovens e articulador das lutas, que aprendeu a ler e a escrever em casa de família, na época em que não existiam escolas em nossa comunidade. Sempre estive inserida no contexto educacional tradicional, desde a minha mais tenra idade, a partir de minha família e das orientações de caciques e lideranças.

Sou bisneta de emblemático Xakriabá, referência na escrita de cartas, cujos destinatários eram aqueles que haviam saído da aldeia em busca de emprego. Sou neta de figura importante nas loas, entoação em versos que é muito comum no meu povo. Meu avô é ainda respeitado pelo conhecimento da tradição oral Xakriabá, em especial da linguagem cantada. Esta entoação eu trago na minha oralidade e no construir do meu pensar, e é assim que muito me apresento.

Nosso povo Xakriabá tem como referência o território nas margens do rio São Francisco. A identidade Xakriabá é caracterizada pela mistura de diferentes elementos culturais. Esta identidade também se faz presente no nome “Xakriabá”, que segundo alguns mais velhos, significa “bom de remo”. Na época do contato com os não-índios, quando nosso povo percorria vários territórios – desde as margens do rio Tocantins ate o São Francisco -, só conseguiam atravessar aqueles grandes rios os que eram “bons de remo”.

Atualmente a nossa população é estimada em torno de 11 mil índios, vivendo em 33 aldeias, liderados por quatro caciques. Cada aldeia tem a sua liderança. Juntamente com os caciques, são responsáveis pelos encaminhamentos das decisões políticas da coletividade. Hoje ocupamos apenas um terço do nosso território tradicional, com área demarcada e homologada de 54 mil hectares.

No ano de 1728 recebemos documento de doação, mas somente em 1988 aconteceu a homologação. Em 1979, na primeira demarcação, reduziu nosso território em 70%, nos limitando ao pequeno pedaço de chão. Eram 200 mil hectares no documento original, mas foi usurpado este direito do nosso povo tradicional.

Dia 12 de fevereiro ficou marcado na memória, dia de dor que levou a uma conquista, transformou a nossa história. No ano de 1987, morreu nosso líder guerreiro. Na aldeia sapé, foi morto por fazendeiro, de forma desumana pela força do dinheiro.

Nosso saudoso Rosalino, que morreu em nossa luta, nosso povo sempre lembra daqueles dias de conduta. Foram grandes lideranças que guardamos na memória, mesmo perdendo sua vida protagonizou a nossa historia.

Outro saudoso cacique, Manoel Gomes, conhecido por Sr. Rodrigo, nesta empreitada não teve medo do perigo. Pois assim se faz a luta, vai trilhando o caminho, uma grande liderança, nunca se sente sozinho.

Pra seguir firme na missão, tem a força dos encantos, que guarda de todos males, com a força de um canto. Na pisada firme dos nossos pés e na entoada do Maracá, vai marcando a resistência do povo Xakriabá.

A falta de espaço é um dos principais problemas enfrentados pelo povo. Segundo as lideranças, a falta de terras para desenvolver atividades físicas e culturais representa grande parte dos conflitos internos no território Xakriabá. Um levantamento realizado pelas lideranças Xakriabá concluiu que, dos 54 mil hectares, 20% são compostos por serras e morros, 40% são terras de tabuleiro de baixa fertilidade utilizadas como área de preservação e extrativismo, 20% são locais de moradia e apenas 20% são utilizadas para o cultivo da agricultura e pecuária. O desafio é garantir a nossa sobrevivência em um espaço que não comporta a cultura e tradição do nosso povo.

Apontamos aqui a significativa invasão dos nossos territórios e diminuição dos recursos naturais. Atualmente, nosso povo está em processo de luta para reaver mais uma parcela do nosso território. Essa ação tem como ponto de partida a consciência do direito e da vulnerabilidade do povo Xakriabá no que se refere à garantia da sobrevivência física e cultural. As áreas reivindicadas atualmente somam um total de 43.357 hectares e se estendem até as margens do Rio São Francisco. Até então, nos é negado até mesmo o direito de pescar e visitar o Velho Chico – espaço sagrado do nosso povo e que se encontra nas mãos de fazendeiros. O estudo antropológico de identificação das áreas reivindicadas já foi concluído juntamente com o levantamento fundiário. O território está na fase de processo administrativo na FUNAI e os indígenas Xakriabá lutam para garantir a demarcação efetiva.

Acompanhamos com preocupação a realidade vivenciada pelos nossos jovens. Nos últimos anos, observamos o grande índice de suicídio e a constante migração para outras regiões do país em busca de melhores condições de vida. Muitos jovens se tornam escravos nas usinas de cana, açúcar ou colheita de café. O sonho de uma melhor condição de vida na maioria das vezes se transforma em pesadelo e sofrimento para toda a coletividade.

Esta situação interrompe um ciclo entre as nossas comunidades e a sua relação com a terra, cultura milenar que sempre garantiu harmonia, sustentabilidade e equilíbrio entre os nossos grupos. Temos clareza de que a cultura não é estática, mas compreendemos também que a relação com o sagrado precisa ser preservada. A nossa espiritualidade é o principal pilar de sustentabilidade do nosso povo: acesso a bens essenciais existentes no passado e que são fundamentais para a continuidade dessas relações.

Nós jovens somos vistos pelos nossos anciãos como o futuro ou as lideranças do amanhã. Já representamos esse papel de articuladores hoje: somos interlocutores e assumimos a responsabilidade na intervenção e na defesa de nossas comunidades. Temos sido incentivados pelos anciãos a buscar novos conhecimentos. Já percebemos a necessidade de compreender com mais clareza as investidas e as armadilhas causadas pelas constantes mudanças conjunturais na política brasileira, o que tem colocado em risco os nossos direitos e a nossa autonomia. Assistimos estarrecidos à eminência do retrocesso nos direitos indígenas, com a ameaça de se transferir para o poder Legislativo a competência pelas demarcações dos territórios indígenas, nos colocando à mercê dos interesses das bancadas ruralistas.

É na diversidade do país onde a cultura se expressa. Muita gente se pergunta: aonde o Brasil começa? Será que é mesmo em Brasília? Onde impera o poder e a desigualdade social? Ou será que é no território do povo tradicional? A resposta é muito clara, mas é invisibilizado este povo guerreiro. Se não contribuímos para que o Brasil seja um país de primeiro mundo, do Brasil somos os primeiros. Não contribuímos desta forma onde a cultura é engolida e matada, onde o valor está no dinheiro – se não tem, não vale nada. Desconsiderando o conhecimento tradicional, estamos sendo sufocados pelo apocalipse do capital.

Hoje em dia ainda me lembro das parábolas de uma liderança, pois palavras como estas eu guardo como herança. Um certo dia lhe perguntaram como era a cerca, como era dividido o território de antigamente, pois as terras eram poucas e deram para muita gente. Ele logo respondeu: o território é cheio de ciência, o limite de uma terra está em nossa consciência.

Depois de 1987, com a construção do “novo Toré”, que reunifica o povo e articula as novas posturas de luta e resistência com enfoque na cultura e na afirmação identitária de reconquistas e retomadas territoriais, é que as iniciativas se reafirmam.

Inúmeras parcerias com ONGs, universidades e órgãos do governo nas esferas, municipal, estadual e nacional fortalecem a consciência e reconhecimento de unificação tanto dos Xakriabá, como de outros grupos étnicos. Os projetos políticos deram empoderamento ao povo Xakriabá, a partir da chegada de lideranças indígenas ao poder público.

Associações e conselhos foram desenvolvidos para articular as políticas internas e externas ao território. Uma constatação e reafirmação da vida em comunidade. Nesse processo, o nosso povo Xakriabá sentiu a imensa necessidade de retomar as praticas culturais de agricultura e da própria organização interna, que foi violentada no processo histórico.

Foto: Edgar Corrêa Kanaykõ
Teatro Xakriabá, Ponto de Cultura LOAS Xakriabá. Aldeia Barro Preto. Foto: Edgar Corrêa Kanayõ

Todos os dias o ser humano passa por caminhos em que se depara com várias coisas e diversas situações. Ainda que olhando para essa variedade de coisas, observa algumas. Outras simplesmente passam. Muitas vezes o entre aspas é invisível, oculto e não percebido. Nele, pode estar o que há de mais rico.

Esse pensamento me levou a refletir, vendo como grande exemplo a cultura de um povo que sofre com mudanças e vibra quando elas trazem vitórias. Algumas delas têm como marca a identidade, como se estivessem tecendo rede, preenchendo os espaços do corpo e dando vida.

A essência de tudo está no que às vezes não se explica e nem todos compreendem. Está na espiritualidade de receber não apenas como dever. Assim vemos nas entrelinhas do saber: diante do “olhar”, onde muitos veem e poucos podem “enxergar”. Esse enxergar é tomar consciência, é ver além. Esmiuçar o que se passa, como ver o interior de alguém. Pois muitos falam, mas as raízes precisam se fincar, na vez de guerreiros: o povo que não se cansa de lutar.

O que comecei a descrever como oculto, para os que ainda não conseguiram enxergar, retirem a venda dos olhos e do escuro: estou falando de uma essência da cultura Xakriabá.

Diante do inusitado conhecimento, os saberes escondidos nos nossos mais velhos nos fazem compreender o sentido de algumas coisas invisíveis aos nossos olhares, mas que são compreendidas pelo nosso espírito. Caminhando juntos, numa mesma direção, relata partes de nossa pintura, identidade de reflexão.

Pois acreditamos que atrás do que vemos existe uma memória, que nem sempre é visível no olhar. Está do lado de fora, mas também no penetrar. Aprendendo que a ciência do povo Xakriabá é como um banho no rio, nas águas correntes. Há aqueles que somente molham e se banham, mas há outros que sentem o banho no corpo e na alma.

Isto também faz parte da identidade: colocar sentimento no que se vê, mas também aumentar a capacidade do olhar. Nas palavras às vezes ocultas, nos valores Xakriabá, nas entrelinhas do saber, por aqui vou encerrar. Pois vivemos grandes buscas, sem deixar nossa cultura, não cansamos de lutar.

Imagem em destaque: Edgar Corrêa Kanayõ


Célia Xakriabá é integrante do povo Xakriabá e coordenadora da Educação Escolar Indígena na Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais

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