Conflito e comunhão

O período de estiagem trouxe uma série de transtornos para a bacia do rio São Francisco – e a chance de repensar os usos das suas águas

Sentadas em canoas de madeira, paradas na beirada do rio, duas mulheres jogam seus anzóis nas águas do São Francisco. O clima é de concentração. Um quase silêncio e muito milho, para atrair os peixes. A maior parte é Piau três pintas. “Quando a puxada é grande meu coração começa a disparar”, fala Rejiane Evangelista, 30 anos, que diz não ter prazer maior que comer o peixe que ela mesma pescou.

Das águas amarronzadas do São Francisco saem os peixes que enchem os pratos das famílias nas cidades ribeirinhas. Sua água abastece a população em Itacarambi, gera energia elétrica em Paulo Afonso, irriga as plantações em Arapiraca. Lava as roupas de cama das senhoras em Quixabá e transporta as crianças para a escola em Morro da Garça, em um gracioso barquinho amarelo, estampado “escolar”. Em Petrolina, sua água é usada para molhar o cruzeiro da igreja por aqueles que têm fé, em rituais que misturam música e oração. Sua água é o meio de vida da população. Sua correnteza embala a identidade de um povo.

Com 2.830 quilômetros de extensão, o rio da integração nacional banha 5 estados brasileiros (Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe), e garante a sobrevivência de plantas, animais e seres humanos, abastecendo grandes cidades e pequenas vilas, aldeias e quilombos. Por oferecer condições de navegabilidade em grande parte do seu trecho, foi via de comércio e desenvolvimento da região, com a passagem de barcos de pequeno, médio e grande porte.

Além disso, é inspiração para canções, cenário de livros e filmes, estímulo para artistas e artesãos. “A história do São Francisco se confunde com a história do Brasil e isso leva as pessoas a terem uma ligação sentimental com o rio, além de ele ser o fator fundamental da sua existência. Um rio diz respeito ao que há de mais íntimo nas populações ribeirinhas”, opina o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco, Anivaldo Miranda.

Embarcação do rio São Francisco: travessia. Foto: André Fossati

As primeiras queixas com relação ao rio vieram com a inauguração da barragem de Sobradinho, em 1979. Os pescadores começaram a observar alterações no fluxo da água e diminuição da quantidade de peixes. Com isso, surgiu o primeiro movimento organizado para pensar a sua preservação: a Associação Prá Barca Andar, que realizou uma viagem de barco de Pirapora (MG) a Xique-Xique (BA) com o objetivo de ouvir os ribeirinhos.

O principal motivo para a instalação de barragens no Velho Chico foi a retenção de água para geração de energia. Atualmente, o rio São Francisco tem sete hidrelétricas com capacidade de 10.356 MW ‒ o que corresponde a 17% da capacidade instalada no país e 98% da região Nordeste.

As barragens, porém, colocam obstáculos à piracema, quando diversas espécies sobem o rio para se reproduzir, e à manutenção das lagoas marginais, verdadeiros berçários para animais e plantas aquáticas. “Com as barragens, o rio passa a ser gerido em função dos seus usos. A vazão nos reservatórios diminui ou aumenta em função da produção da energia”, explica o integrante da Articulação Popular pela Revitalização da Bacia do São Francisco, Ruben Siqueira, da coordenação nacional das Comissões Pastorais da Terra.

Para o especialista em recursos hídricos, Patrick Thomas, superintendente adjunto de regulação da Agência Nacional de Águas (ANA), é mito dizer que as barragens acabam com o rio. “Na verdade é o contrário. A barragem é como uma caixa d’água que acumula água durante o período chuvoso e libera durante a estiagem. Se não fosse a barragem de Sobradinho o rio São Francisco estaria em uma situação pior”, acredita.

A questão também afeta os afluentes do Velho Chico, como é o caso do Carinhanha, um dos únicos rios da margem esquerda que ainda não possui barramentos. Ali está em fase de estudo o licenciamento de três Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs): Caiçara, Gavião e Catumbi, que afetariam diretamente o ecossistema local. “Por não ter barragens e manter boa parte das margens preservadas, o rio ainda tem muita água e uma fauna muito rica. Ele é um repositor de peixes do São Francisco”, explica o gestor do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, Luis Sérgio Martins. Em junho de 2013, a população impediu que fosse realizada uma audiência pública em Côcos, na Bahia, para discutir as PCHs. Também houve um posicionamento do Conselho do Mosaico Sertão Veredas ‒ Peruaçu contra os empreendimentos. Atualmente, eles estão suspensos.

Outra questão que dificulta a manutenção da vida aquática é a pesca predatória. No rio São Francisco, é proibido usar malha fina, um tipo de rede com buracos bem pequenos que impendem os  filhotes de escapar. Com a diminuição da quantidade de peixes adultos, porém, os pescadores vêm realizando esse tipo de prática com mais frequência.

Após o início do processo de geração de energia elétrica, a bacia do rio São Francisco passou a ser ocupada para diversos usos. Há décadas que o Cerrado sofre com práticas agrícolas equivocadas que geram erosão, perda de solo e poluição por uso excessivo de agrotóxicos. A intensificação do agronegócio no período da ditadura militar marcou a superutilização dos recursos da bacia, principalmente água e solo. “70% da água do São Francisco vem do cerrado mineiro. Se tornou altamente produtivo do ponto de vista do capital esse tipo de agricultura. Hoje você vê os chapadões do cerrado, local de nascentes, totalmente devastados”, conta Ruben Siqueira, que associa a rápida queda nos níveis dos afluentes e a intensificação do assoreamento dos rios a essas novas formas de trato da terra, orientadas exclusivamente à satisfação de necessidades do mercado.

Foto: André Fossati

O processo histórico de industrialização reflete também na poluição das águas do Velho Chico e dos seus afluentes. São décadas de lixo, dejetos industriais e esgotos domésticos que levam para o rio, ainda que depurados, uma série de elementos tóxicos. A poluição dos rios Pará, Paraopeba e Velhas está acima do nível permitido pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente.

A bacia vive a estiagem mais crítica de toda a sua história. Os reservatórios nunca estiveram tão baixos. No ano passado, Sobradinho chegou a 1% do seu volume útil. Hoje ele está com 30%. A bacia, com 33%. O principal motivo é a falta de chuvas.

Uma das consequências dessa situação é a piora na qualidade da água. Segundo o enquadramento dos corpos d’água, instrumento que classifica a qualidade das águas para avaliar se ela é compatível com seus usos, enquadra o Velho Chico como classe 2. Isso significa que ele pode servir ao consumo humano, após tratamento simplificado, à recreação, à irrigação e à proteção de comunidades aquáticas. Mas alguns pontos do rio têm qualidade inferior. No baixo São Francisco, próximo ao reservatório de Xingó, entre Alagoas e Sergipe, houve o aparecimento de uma enorme mancha negra, devido à proliferação de cianobactérias, que aconteceu pelo excesso de matéria orgânica presente no rio. “Quando a vazão baixa, a qualidade piora. A quantidade de esgoto é a mesma, mas com menos água é mais difícil diluir aquilo”, explica Patrick.

Isso demonstra a necessidade de apressar obras de saneamento básico em todas as cidades da bacia, a começar pela calha do rio São Francisco. Anivaldo diz que o Comitê tem trabalhado nesse sentido. “Ele não tem recursos para a execução das obras, mas tem bancado os planos de saneamento básico de muitos municípios, condição básica para conseguir recursos para as obras”, diz. Hoje, o Comitê é o maior investidor em planos municipais de saneamento na bacia. “Já fizemos 26 e pretendemos fazer mais 40”, completa.

Apesar da sua boa recuperação, o rio São Francisco não saiu da crise. Algumas medidas têm sido usadas para fazer com que a água dos reservatórios dure mais tempo, como a redução nas vazões. Sobradinho, por exemplo, liberava 1300m³ por segundo e hoje libera em média 800m³ por segundo.

A diminuição das vazões afeta sobretudo a qualidade da água, mas também a mobilidade dos ribeirinhos e as travessias por balsas onde não há pontes. Ainda com a redução da vazão, a água recua de nível e muitas captações ficam no seco, prejudicando a irrigação e o abastecimento. É preciso então construir sistemas alternativos – bombas flutuantes, encanamentos maiores, etc.

Até o momento, não houve interrupção do fornecimento de água para consumo humano. Alguns setores, porém, foram mais prejudicados. “No Nordeste tem locais onde a irrigação foi totalmente suspensa, como em Campina Grande, na Paraíba, e Piranhas, no Rio Grande do Norte. Houve também a interrupção de algumas embarcações por causa do nível da água, como o vapor Benjamin Guimarães, em Pirapora”, conta Patrick. Em outras regiões do país, houve adaptação para diminuir a tomada de água.

O período de chuvas este ano já passou, e se não for feita uma boa gestão dos volumes há o risco de chegar no final de 2016 sem água nos reservatórios. A situação é mais grave no Nordeste do país. A Agência Nacional de Águas monitora cerca de 500 reservatórios na região. A Bahia se recuperou e está com uma média de 63% do seu volume, assim como o Piauí, com 60%. Quatro estados, porém, estão com uma média pequena: Ceará e Pernambuco, com 13%, Paraíba com 16% e Rio Grande do Norte com 22%. As perspectivas são de que a água se esgote nesses estados no início de 2017.

Festa no rio: quando os barcos se encontram. Foto: André Fossati

Os múltiplos usos da água na bacia sempre foram conflitantes. Em 1985, o extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento criou um projeto para tentar equalizar essas questões: a transposição do rio São Francisco. As obras foram iniciadas em 2007, sob a responsabilidade do Ministério da Integração Nacional, e preveem a construção de mais de 700 km de canais de concreto ao longo de quatro estados (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte) para o desvio de parte das águas do rio.

O projeto é polêmico. A justificativa do governo é que dessa forma será possível levar água para regiões que sofrem com a falta de disponibilidade hídrica. Na visão de Patrick, é a alternativa para alguns estados nesse período de longa estiagem. A conclusão da obra está prevista para dezembro de 2016.

Os que criticam o projeto argumentam que a água só vai favorecer os grandes agricultores da região, atrapalhando o equilíbrio natural do rio. “É mentira que a transposição vai resolver a seca de 12 milhões de pessoas. Tudo é feito para criar uma malha hídrica para aproveitar a produção de frutas”, opina Ruben. Para ele, o projeto vai atender a grandes polos portuários e siderúrgicos e a todo um complexo de empresas.

Além da desconfiança quanto ao acesso da população aos benefícios previstos pela transposição, Anivaldo Mirando lembra que ela não acompanha a urgente revitalização do São Francisco. “O governo federal prometeu que a cada centavo da transposição iria um centavo para a revitalização. Até agora, esse último mal saiu do papel”.

Revitalizar um rio não é tarefa fácil, mas um grupo em Januária conseguiu mostrar que também não é impossível. Nos últimos 15 anos, comunidades vizinhas se uniram para recuperar o rio dos Cochos, um pequeno afluente do Velho Chico. O envolvimento se deu em ações como a recomposição da mata ciliar, a criação de tecnologias para contenção de enxurrada, a instalação de sistema de bombeamento da água, entre outras. O grupo associou o processo de recuperação ambiental ao de geração de renda para as famílias que, hoje, conseguem comercializar uma série de produtos, como os frutos do Cerrado.

O resultado? Um rio limpo, comunidades que prosperam, e uma experiência que vem sendo multiplicada. “É bom mostrar que é possível viver de outro jeito. Se a gente não multiplicar essa consciência, particular, não tem como as autoridades não se sentirem responsáveis. Hoje, as autoridades estão totalmente divorciadas das necessidades do povo”, opina Ruben Siqueira. Para ele, a experiência é um exemplo a ser seguido, mas, para uma mudança substancial, é preciso ações maiores, que envolvam o Estado e o mercado.

Para restaurar a saúde da bacia, é essencial equilibrar seus diversos usos – potencial elétrico, pesca, turismo, agricultura, abastecimento humano. “Isso implica em investimentos e mudanças de paradigmas, mudanças culturais. O setor elétrico e o setor agrícola são refratários a mudanças, como a introdução de tecnologias que implicam no uso mais racional da água”, diz Anivaldo, quando avalia o direito de todos os usuários.

Essas mudanças visam à preservação não somente do rio enquanto recurso hídrico, mas também enquanto entidade. “Tem a Caatinga, o Cerrado, a mata ciliar, os locais sagrados, o extrativismo, o local de criação de abelha, das ervas medicinais. Preservar os territórios tradicionais, para nós, é manter a vida da bacia”, afirma Ruben, um apaixonado pelo rio. “A gente é contagiado por esse modo do povo ribeirinho com o seu rio. O rio é o ente da família, ele é o pai e a mãe, é o ente principal. Eu conheço ribeirinhos que não começam o dia sem ir lá e se benzer.”

Imagem em destaque: André Fossati


*Juliana Afonso é jornalista e integra o projeto Cinema no Rio São Francisco


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