Apoenah: um lugar além

A banda Apoenah mistura instrumentos e ritmos musicais para dizer sobre o lugar de onde vieram

Misturando poesia, música, artes plásticas e artes visuais, a banda Apoenah se diz movimento cultural, o Barrancarte, que quer dizer arte de barranco. Barranco é uma palavra de sentido amplo, que faz referência ao rio, à fauna,  flora, mas sobretudo àquele que vive em sintonia com o lugar, o Barranqueiro. 

A Apoenah, da cidade de Itacarambi, é uma junção de gêneros: rock, forró, maracatu, baião, hip hop. Os instrumentos também são diversos: sanfona, violão, triângulo, caixas agudas e graves, alfaias feitas com material que seria jogado no lixo, e ainda berimbau, pandeiro,  maracá e, por vezes, baixo. Raimundo, vocalista e fundador da banda, brinca que a Apoenah parece ter jogado toda essa mistura no liquidificador, tamanha dificuldade em denominar um ritmo ou gênero. É uma banda experimental, que carrega a riqueza típica do sertão.  

Ouvir a banda é como viajar para dentro desse local, tão concreto e tão  misterioso, que o escritor mineiro João Guimarães Rosa eternizou em sua obra Grande Sertão: Veredas, “o sertão está em toda parte e está dentro da gente”. Rosa, aliás, é inspiração para o grupo. Além do escritor, as principais influências da banda são Lirinha, da extinta Cordel do Fogo Encantado, do sertão de Pernambuco, e Chico Science, artista já falecido, também de Pernambuco. Desses, vem a inspiração de Raimundo para declamar versos nos palcos.

A banda e o Sertão

A música da Apoenah valoriza a cultura, as tradições, os antepassados e as paisagens do sertão, como as cavernas do Peruaçu, com suas pinturas rupestres. As letras das canções são profundas como o céu do lugar, e abordam questões como a relação dos barranqueiros com o Rio São Francisco, o modo de vida dos sertanejos e a luta por justiça. 

A maior parte das canções é de autoria de Raimundo. A primeira que ele compôs e que nunca foi gravada- pelo menos por enquanto- serviria de referência para todas as composições do grupo. “América Roubada” fala de terra, de justiça, de resistência cultural em contraponto com a vida nas cidades:

“A mãe terra, revoltada

com tanta ganância, tantas ameaças

um reflexo de um século tecnofrágil

em estágio real avistado

(…)

Irmãos índios Xakriabás 

com lanças e punhos 

batalham pelo reconhecimento das terras

e ainda hoje resistem 

com os pés fincados em seus solos sagrados

que os tais coronéis insistem ainda em roubar 

preparados para o embate

chamamos a proteção da onça Iaiá 

Tão procurando os Xakriabás

Afinal o que pregam hoje nas cidades?”

O nome da banda, Apoenah, é indígena, da língua Tupi-Guarani. Significa um lugar além, “além das coisas materiais e que nos prendem nesse mundo aqui”, como explica Raimundo. Outra banda levava o nome “Apoena”, mas como a escolha tinha tudo a ver com a formação da banda e com o Movimento Barrancarte, o grupo acrescentou um H no final. 

A banda pode não ter uma definição de gênero, mas como deixa claro Raimundo, “os elementos que permeiam esse sertão a gente traz pra proposta de musicalidade”. E como falar de sertão sem falar em causos? Ainda mais de sertão mineiro? Falo daquele bom papo, com suco de maracujá colhido do quintal ou um café quentinho. A banda até dedicou um dedo de prosa ao sertão em uma música, a “Dedo de prosa Catrumana”. 

O caso da onça Iaiá, que os sertanejos juram ser verdade, está muito presente nas canções da Apoenah. A Iaiá é uma proteção: conta-se que na época da colonização do Brasil, o português Matias Cardoso (que dá nome a uma cidade próxima), chegou com a Coroa Portuguesa e teve aval para invadir qualquer área que alcançasse. Para conseguir o feito, matou muita gente, principalmente indígenas que viviam às margens do Rio São Francisco, o velho Opará, como eles o chamam. Quando o filho de Cardoso, Januário Cardoso, decretou a expulsão dos Xakriabás das margens do rio, passou-se a ver a tal Iaiá, uma índia que se transformava em onça para comer os inimigos do seu povo. 

Formação da Apoenah e projetos do Barrancarte

A banda Apoenah é uma grande família, pode-se dizer assim: os atuais integrantes são Raimundo Oliveira, no violão e voz; Lucas na caixa de reis, alfaia, triângulo, berimbau e pandeiro e Gilberto no acordeon e voz. Ambos são irmãos de Raimundo. Iridan Ramos, vocalista, é esposa de Raimundo. Há ainda Wellinton Farias, guitarrista, primo dos três, e Gabriel Pires, na percussão, tocando alfaia e caixa de reis. 

O grupo se formou no início de 2012 e as canções carregam muitas lembranças da infância vivida no sertão. Raimundo e seus irmãos, quando crianças, admiravam o pai com a sanfona e a mãe puxando o grupo de Reis das Pastorinhas. Assim, seguiam os pais nos festejos e cantorias. Dos avôs, ficaram os causos contados no Riacho da Cruz, que despertavam fantasias e instigavam a veia artística dos meninos. Outra memória dos tempos de infância no sertão é o movimento Reizado, trazido da Bahia pela saudosa Sá Martinha.

Na internet, local onde costumamos procurar por artistas, não tem material farto da Apoenah. Para sorte dos que admiram o som – e dos que virão a curtir – o primeiro CD da banda está em fase de produção. 

Os Apoenah sonham. Sonham com um mundo melhor e um sertão preservado com as coisas boas de lá. Do envolvimento com a Comissão Pastoral da Terra, veio a vontade de Raimundo, compartilhada com todo o grupo, de levar mensagens de luta. As questões socioambientais são muito abordadas, como o desmatamento do cerrado e o secamento de rios e córregos. 

O movimento Barrancarte já realizou diversas ações de educação com a juventude da região onde está inserido, nos âmbitos ambiental e patrimonial. A atual ação é um projeto de aulas gratuitas de violão, que acontece a partir de uma parceria com a Secretaria de Educação do Estado. 

A banda pensa, em criar uma associação que viabilize a chegada de  recursos para continuar os projetos de educação. Após a gravação do CD, Raimundo ainda tem a tarefa de  lançar seu livro que está em fase de produção e é inspirado nas obras de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e outros autores e poetas que narraram os sertões. Além do envolvimento nesse processo artístico-cultural, Raimundo é espeleólogo – pesquisador que se dedica a estudar cavidades naturais, como cavernas. Ele acabou de encontrar um fóssil que pode ser de um preguiça-gigante. 

Imagem em destaque: André Fossati


*Aline Frazão é jornalista e produtora na Rede Minas de Televisão, atua no Jornalistas Livres e faz parte da Frente Brasil Popular Minas.

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