Plantadores de águas

“Os rios que eu encontro vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca, em que a água sempre está por um fio”.
João Cabral de Melo Neto

O Cerrado é uma de nossas matrizes ambientais mais antigas, considerado como um sistema biogeográfico que envolve vários subsistemas. Ele se diferencia por seus solos, plantas, pela quantidade de água nos lençóis freáticos, pelas comunidade de animais. Em especial, é reconhecido como o ‘berço das águas”, cumeeira do continente, alimentando grandes bacias hidrográficas na América do Sul. É a grande casa das águas, concentrando nascentes que abastecem oito das doze grandes bacias brasileiras. A região abriga os três importantes aquíferos Urucuia, Guarani e Bambuí.

Quando pensamos no Cerrado, somos remetidos à imagem da casa, habitat de humanos e não humanos, ambiente de maior respeito e guarda. O chão desta casa é responsável pelo alimento que nutre os aquíferos, as águas subterrâneas que percorrem os chapadões e rebrotam em nascentes, formando novas águas. Para alimentar os lençóis mais profundos, é necessária a vegetação, em especial as plantas nativas, afirma o professor Altair Sales Barbosa.

Diferentemente da Amazônia, as árvores do Cerrado crescem num tempo maior e suas raízes precisam ser mais profundas. Cada árvore necessita crescer pelo menos 7 metros para baixo da terra para alcançar as águas subterrâneas. Não há discordância em pensar que são das áreas de Chapada as maiores fontes de alimento dessas águas.

De acordo com o analista ambiental e pesquisador Walter Viana, a região do Peruaçu sofre com a seca dos rios e o mal uso das águas, como a falta de controle de poços tubulares e de outorgas, mesmo as já liberadas. O que existe, afirma, é a crença de que basta proteger as nascentes e plantar árvores para resolver a questão hídrica na região. Mas, para ele, agora é necessário fazer um trabalho direcionado ao uso e governança das águas, com a necessidade de um Estado mais atuante.

No território do Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu e em boa parte da margem direita do rio São Francisco no Norte de Minas, a ocupação das áreas de chapadas vem sendo dos grandes monocultivos e da produção industrial próxima das cidades. É importante destacar que boa parte dos afluentes do São Francisco da margem direita recebem suas águas principalmente das chuvas, sofrendo influência direta do clima. Dessa forma, têm como característica serem, em grande parte, rios temporários, que param de correr com o período das secas e retornam “no tempo das águas”. Entretanto, é da junção dessas margens que compreendemos a perenidade do Velho Chico. A bacia compõe as raízes do grande rio, nutrindo-o de novas águas e cores. É, também, no encontro dessas águas que os peixes sobem para desovar e assim garantir o ciclo da vida.

Seguindo o rastro das estrelas

Foi no rastro das estrelas que iniciamos nossa travessia pela região do Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu, no norte e noroeste de Minas e pedacinho da Bahia, para falar de águas. De acordo com os moradores das comunidades ribeirinhas do Urucuia, da Carinhanha e do Peruaçu, completara-se cinco anos sem chuvas. Decidimos seguir sem medir distância. Rumar pelas trilhas estreladas em busca da Beleza que resiste mesmo em tempos de seca: homens e mulheres que são parte daquelas águas.

Chegamos, assim, ao Vão dos Buracos, comunidade situada em um grande cânion, compartilhando a morada com as araras vermelhas, abrigo de uma das nascentes do rio Pardo. O Vão é identificado como uma espécie de corredor de biodiversidade e de histórias sertanejas, que une o Parque Nacional Grande Sertão Veredas ao Parque Estadual da Serra das Araras e as comunidades tradicionais quilombolas de Morro do Fogo e Barro Vermelho. Devido à sua especial formação geológica e hídrica, possui pouco espaço de terra firme para uso em agricultura, visto que grande parte é constituído pelo rio Pardo e suas veredas.

Mas o que nos levou até o Vão foi uma pergunta: quem planta água no território? E que histórias estão atreladas a esse gesto? Mais do que conhecer tecnologias sociais que ajudam a preservar nascentes, encontramos corpos nutridos de estrelas colhendo vida na região do Norte de Minas.

Mulungus do brejo margeiam as minas no terreno de Zé Torino. Vê-se a água brotar do chão. Foto: Kika Antunes

Plantadores de águas

Plantar é um ato relacional, produzido pela junção entre ser humano, terra e água. Mais do que uma opção na subsistência alimentar, plantar requer espera, observação, persistência. Quem planta participa de um ciclo íntimo e misterioso em que o trabalho não produz apenas o alimento para ser comido, mas transforma-o em dádiva.

Numa região onde a seca é sempre uma ameaça à permanência, moradores começaram a plantar água. Com técnicas simples, algumas já reconhecidas tradicionalmente e outras trazidas por pesquisadores, experiências têm revelado resultados surpreendentes.

As primeiras casas de plantadores de águas são a de Tico e Maria e a de Seu João e Dona Maria, membros da associação Quilombola de Buraquinhos, sendo Tico o vice-presidente. Ambas as casas hoje produzem alimentos diversificados em sistemas de agroflorestas, ligando o manejo tradicional das veredas à transição agroecológica sem uso da queimada.

As duas agroflorestas, sistemas de plantio que integram cultivos agrícolas e árvores, fazem do lugar um local de produzir em pouco espaço físico, com diversidade. Pelas condições de localização, as duas agroflorestas têm 400 metros quadrados plantados com banana, feijão, mandioca, acerola, limão, cana-de-açúcar, hortaliças e seis árvores de eucalipto que vão garantir a troca da cerca para o próximo ano.

Para Tico, o sistema foi a melhor solução para a família, com os filhos – e as necessidades – crescendo. No Quilombo dos Buraquinhos, situado a cerca de 32 quilômetros da sede do município de Chapada Gaúcha, já se pede terra para viver em família. O sistema de agrofloresta permitiu não apenas plantar água, mas demonstrar que a diversificação da produção pode ser feita em uma área de 20x20m, explica ele. Um dos grandes desafios do quilombo é a expansão da fronteira agrícola em terras adequadas ao cultivo, numa percepção comunitária do Cerrado.

Os sistemas agroflorestais implantados no Vão dos Buracos contribuíram para a construção de um olhar cuidadoso no manejo e na relação com a terra, a partir do princípio metodológico do “aprender fazendo”, inspirado no educador Paulo Freire. A ação foi realizada em parceria com a Ecoforte e coordenada pela Funatura, que buscava trazer soluções para demandas existentes na comunidade. De acordo com Fernanda Maciel, engenheira agrônoma e zootecnista, a partir do mutirão que envolvia todos os membros das famílias beneficiadas, a criação e manejo das agroflorestas constituíram seu conceito para a própria comunidade. Hoje, Tico e seu João e as duas Marias são capazes de explicar o ciclo de produção das águas e dos alimentos de maneira a dar inveja a pesquisadores do tema. “O saldo de qualidade e a diversificação da produção geraram inclusive excedentes que poderão ser comercializados”, afirma Fernanda Maciel. 

Descendo o rio Pardo em direção a Januária, alcançamos o médio Peruaçu. Quem faz as honras da acolhida é a família de Seu Zé Torino e Dona Nelinda, moradores da comunidade Peruaçu, vizinhos à Área de Preservação Ambiental Cavernas do Peruaçu. A entrada da casa é pintada à mão e são as flores plantadas por Nelinda que nos dão as boas-vindas, revelando mãos cuidadosas e alegria sertaneja.

Zé Torino, assim como é conhecido, chama-se José Aparecido de Macedo. O apelido vem desde menino. Naquela época ele não gostava muito, mas sorrindo diz que hoje, se pudesse, “trazia para dentro do nome”. Seu Zé Torino casou-se com Dona Nelinda no início da década de 80. Logo, seguiram para São Paulo em busca do sustento da família, como tantas histórias frequentes nas regiões do interior. Seu Zé nunca se esqueceu do Gerais e das terras onde “tudo dava antes”. Retornou com a família para cuidar das terras do sogro, colocando roça. Muito engenhoso, como se identifica, ele ficou na parte mais alta das terras, e como gostava de lidar com “plantio e proteção”, dedicou-se principalmente às árvores.

Sua propriedade é atravessada pelo rio Peruaçu, um dos mais importantes da região e que hoje corre com fartura. Mas não foi sempre assim. Atento às épocas do ano e curioso, Torino realizava, dentro de sua área, experimentos para fazer voltar a água das sete minas que tinham secado. Em 1996, iniciou o processo de recuperação das nascentes, subindo sua roça para cima e deixando a área das minas d’água regenerarem. Para ele, essa ação diminuiria o impacto sobre a terra e as minas poderiam retomar forças novamente. Conta que, nesse período, a assistência técnica era da sua cabeça com a contribuição dos cursos que fez. Isso o levou a pensar outras possibilidades de produzir e gerar renda.

Nos diz que o presente de casamento foi a morada, mas também as minas d’água, antes secas e hoje recuperadas. Olha sorrindo para o rosto de Nelinda, que nos acompanha atenta e busca atalhar as brincadeiras de seu companheiro.

Sem sentirmos o tempo passar, já estávamos caminhando dentro da vereda. Toda rodeada por uma planta alta, parecida com a cana mas que na verdade é uma espécie de capim especial utilizado para proteção de nascentes. Seguimos abrindo picada por dentro do capim, Terêncio identificando as minas d’água. “Espia só, era aquela mina que queria mostrar, a mais difícil, a mais escondida”. Antes de chegar, tivemos que pedir licença às abelhas que ali pousavam protegendo o brejo profundo. Pequenina, a mina se colocava ali frente a frente com seu cocriador. Em silêncio, ficamos a olhar a água borbulhando no meio do capim alto, vinda de dentro do chão. Terêncio, com seu facão ao lado, brilhava os olhos: “assunta meninas, vejam como ela faz”.

Das cisternas à floresta: plantar água é chover fulô

“Quando chovia as primeiras águas de granizo nos Gerais, era proibido dizer que era chuva de pedra, pois era perigoso falar essa palavra, ensinavam os mais velhos. Ao invés de pedra, a mãe ensinou a gente a dizer que está chovendo fulô”.
Fabiana Lima, memórias de infância, grupo Diadorina

O que leva uma família a criar modos e invenções para transformar o ambiente? Nelinda, de olhar penetrante e fala baixa, só ria ao longo da nossa visita. É de parte do seu trabalho que a família tira todo o sustento da casa. Sente saudade de lidar diretamente com a vereda, onde tinha sua horta, mas compreende que aquele lugar necessita de outra forma de cuidado e reconhece que em seu quintal hoje tudo dá. Ela produz hortaliças, frutos do Cerrado e de quintal – que ela transforma em polpa para suco –, mandioca, feijão. Na agrofloresta, “lugar que se planta dentro da planta”, já aponta os pés de cajá-manga, manga, figo, amora, jacarandá-mimoso, caju, umbu-cajá, caqui e cacau. “Ainda novinho, mas tão logo já produzindo”.

Por todo o quintal encontramos mimos produzidos por ela: “Na horta, quando termina um tipo de verdura, começa novamente. A alface é casadinha com a rúcula, uma pertinho da outra”, para que sua escolha seja feita de modo alternado. Coentro, salsa, cebolinha e canteiro de repolho, todo o beneficiamento das folhas e dos frutos é feito por ela, até sua comercialização.

Mas Zé Torino e Nelinda sabem que planta-se água para que as nascentes sobrevivam e os rios voltem a correr. Assim, o consumo para a casa e a horta precisa respeitar esse ciclo e não retirar a água “plantada” nas minas. Em 2016, toda a produção foi mantida com água da cisterna, implantada no quintal pela Cáritas de Januária, para captação da chuva. “Deu para plantar o ano todo”, afirmam. A água vem da caixa d’água, abastecida pelo calçadão, espécie de piso de cimento, em formato retangular, com caída para caixa d’água. O casal sabe que, cuidando da água, ela virá de qualquer jeito. E o carinho é tanto que eles fizeram gravar no cimento do piso os nomes dos parceiros que ajudaram a construir a cisterna, toda rodeada de flores. Tecnologia social, inovação e amizade que crescem junto com as nascentes.

O terreno de Zé Torino, nos Olhos D’água, é um dos pontos em que o rio Peruaçu corre cheio. Foto: Kika Antunes

Água que vem das cisternas

É sabido que as políticas públicas de acesso e gestão da água mudaram muito ao longo dos últimos 20 anos. Foram mais de 1 milhão de cisternas construídas com apoio da ASA – Articulação do Semiárido, nos dez estados que compõem o semiárido brasileiro. Além de possibilitar o acesso à água, as cisternas se tornaram importantes na permanência das comunidades e famílias em suas regiões, na liberdade de organização e participação política. Hoje a implantação dos sistemas leva em consideração o local, o uso de mutirões, a participação das mulheres e o estabelecimento de trocas, fundamentais para o desenvolvimento pessoal e comunitário. A política de cisternas, aliada a outras ações de desenvolvimento e distribuição de renda, contribuiu em larga escala para melhorar todos os índices de desenvolvimento no Semiárido.

O imaginário da terra rachada com os animais abandonados à própria sorte ainda permanece na percepção do senso comum e muitas vezes nas propostas eleitorais. A Articulação por uma Educação do Campo no Semiárido Mineiro – composta por educadores geraizeiros, quilombolas, indígenas, pescadores, vazanteiros, groteiros, assentados do movimento dos trabalhadores Sem Terra, trabalhadores do movimento sindical, agricultores camponeses e pesquisadores regionais– publicou em 2017 o livro Opará e Jequi: os vales e seus saberes, buscando romper tal visão e afirmar que a região possui um vasto e rico acervo natural, cultural e humano, que encontra forças na coletividade e que celebra com alegria a própria vida, marcada pela necessidade de solidariedade mútua.

Apesar da política atual realizada de forma participativa, as famílias de plantadores de águas que conhecemos nos mostram que a convivência no Semiárido a partir da ideia de “combate à seca”, promovida pelo Estado sobretudo a partir da década de 80, gerou distorções na relação entre homem e natureza. O desafio agora é compreender o conjunto de biomas do Semiárido brasileiro como regiões de matas nativas, com suas particularidades, dinâmicas e necessidades de respostas aos temas ambientais. Que nosso povo sinta-se parte da natureza como lugar rico e múltiplo, que necessita ser cuidado para que a água regenere em sua diversidade de ciclos. Podemos sonhar que, para cada cisterna implantada, uma árvore de seu Zé Torino e Nelinda será plantada. Descolonizar a visão de natureza apenas como recurso para a produção de bens de consumo para considerá-la como espaço de con-vivência.

É no quintal de Nelinda e Seu Zé que aprendemos que cisterna não se separa da floresta, em um olhar que une o quintal e o Cerrado. Eles não apenas ajudam a preservar nascentes e veredas, mas nos mostram que a vida necessita da reciprocidade, aquela que a antropologia define como “dar para que o outro dê”. Plantar água é, por isso, um gesto de nos recordar que somos feitos dessas mesmas águas.

Imagem em destaque: Kika Antunes


* Damiana Campos é pedagoga do Núcleo de Educação e Cultura do Instituto Rosa e Sertão, membro do grupo Diadorina e colaboradora do CineBaru.

** Marcela Bertelli é antropóloga, gestora cultural, membro do grupo Ilumiara de pesquisa e música, diretora da Lira Cultura.

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