Norte das violas

Nos anos 70 eu iniciava minha carreira musical em São Paulo. O Brasil vivia tempos sombrios, de ditadura. Entrei na faculdade de jornalismo, mas me aborreci muito com o que era ensinado, alguns professores estavam presos. Sentia que precisava encontrar um caminho artístico, que fosse de acordo com minhas aspirações, mas não sabia por onde começar. Até que eu li “Grande Sertão: Veredas”. Pronto! João Guimarães Rosa nos oferecia um mundo. Assim, em 1977, junto com dois amigos, fomos morar no Urucuia.

Não tínhamos nenhum conhecido para procurar, uma indicação que fosse, nome de ninguém, cidade, violeiro, nada… Apenas o mapa feito pelo Poty das edições antigas do Grande Sertão e a informação que no dia 13 de junho havia uma festa importante na Serra das Araras. Pensávamos assim: ora, se o Rosa alcançou uma linguagem tão extraordinária e musical em seu texto, é que deve existir uma música muito importante nessa região que ele retrata. Vambora!

Conseguimos marcar uma conversa com Ariano Suassuna e Antônio Madureira, no Recife, que nos contaram um pouco de suas pesquisas para o Movimento Armorial. Aí, pegamos o vapor em Petrolina, subimos o Rio São Francisco até Januária. Ali tomamos um ônibus para a Serra das Araras. Vimos a festa para Santo Antônio sendo montada, os mascates e fiéis chegando, vinham noivos e noivas para os casamentos coletivos, crianças para os batizados. Moço, dona, vão ouvindo, esse foi o primeiro contato de três jovens de 19 anos, nascidos e criados em São Paulo, com o sertão mineiro.

Fugíamos da agitação da festa e encostávamo-nos nos sertanejos. Conhecemos Miguel Fogoso, cangaceiro do bando de Antônio Dó, que nos recebeu em sua casa e contou do corpo fechado de seu chefe; almoçamos na casa de uma senhora que curou a febre de seu filho a poder de reza, desenhando cruz no peito e na testa do menino e mandando benzer sua roupa; e finalmente conhecemos um vaqueiro chamado Juquinha Gombê. Ele havia ido a cavalo de Porto de Manga (hoje a cidade Urucuia) até a Serra, pagando uma promessa de muitos anos. E nos disse que viola, Folia de Reis, cantoria, tudo o que a gente queria, tinha em Porto de Manga. Cantou-nos um aboio e tocou um batuque na caixa. Lindo! Ele morava na Taboca, meia légua de Porto de Manga. Disse-nos que fôssemos para lá e que disséssemos a qualquer um que éramos seus amigos.

Com esse cartão de visitas, pegamos um caminhão na Serra das Araras e chegamos em Porto de Manga. Lá fomos muito bem recebidos, apesar da desconfiança de muita gente. Ora essa, por que três meninos de São Paulo estavam querendo ir morar no Urucuia se o movimento natural de todos era sair de lá para morar na cidade grande? Fazíamos o movimento inverso.

Logo conhecemos João da Mata, filho do seu Juquinha. O João é profundo conhecedor do cerrado, sanfoneiro e, quando paramos na porta da sua casa, ele estava construindo um carro de boi! João nos apresentou ao Manoel de Oliveira, Mestre Manelim. Ai ai ai… cheguei! Conheci vários mestres enquanto morei no Urucuia. Todos grandes violeiros. Mas com o Manelim aconteceu algo diferente. Aceitou-me como se fosse um filho. Passei temporadas em sua casa. Trabalhava na roça durante o dia e no final da tarde ficávamos no terreiro de sua casa tocando viola. Foi assim que aprendi o toque da Inhuma, o voo dos Papagaios, a peleja do Sapo e o Veado, o toque do Conselheiro, a afinação Vencedor, ah, as afinações todas, enfim, isso ia muito além do que eu imaginava encontrar. E mergulhei de corpo e alma na viola.

Os violeiros Badia, Paulo Freire e Manoel, reunidos na festa de Urucuia. Foto: Cacai Nunes

Fui percebendo que o aprendizado de viola no sertão passa obrigatoriamente pelo convívio com a natureza, pela maneira de viver e se relacionar com as pessoas. Quando alguém me procura para ter aula de viola eu sempre respondo: “Gosta do jeito que eu toco? Ué, vai pro Urucuia, gruda no Manelim, nos mestres, levanta uma cerca, planta feijão na vazante do rio, vai!”. Sim, e muita gente foi…

Como aprender o toque da Lagartixa, como aprender o rolo que o sapo fez com o veado, como atentar para a presença do tinhoso, como é possível este aprendizado sem viver no sertão? Ah, falar nisso, o capeta… Seu Manoel sempre me colocou longe disso. E dizia: “Paulo, usa, que serás mestre”. Quer dizer, estuda, toca, agarra na viola e não procure esse atalho! Mas como explicar um bocado de coisas que vi e vivi no sertão? O que me perseguia dentro do cerrado perto da casa do seu Juquinha, que só sossegava quando eu parava e encarava um vazio cheio de movimento bem na minha fuça? Ou o que aconteceu quando comi fígado de bicho preguiça na casa de um violeiro sabidamente pactário? Ah, nada não digo…

Os rabequeiros também não ficam atrás. Seu Antônio, no Urucuia, além de tocar muito, sabia lidar com outras coisas. Vai ouvindo. Íamos em cima da boleia de um caminhão cantar em um cemitério, na Folia de Reis do Mestre Manelim. Avistamos lááá na frente as nuvens se formando, anunciando tempestade. Nós na boleia, o cemitério sem um teto sequer. Seu Antônio fez um gesto com a mão, como que espantando as nuvens, e disse: “Ah, bem que essa chuva podia voltear a Folia e cair só depois que estivéssemos voltando”. Dito e feito! Vimos a chuva cair ao longe, e depois respeitosamente despencar no nosso rastro. O que foi isso? E tinha também o seu Henrique, o Pau-Ferro, em São Francisco, com todos os seus preparados na garrafinha, que davam coragem e curavam todos os males.

Quando o movimento das carvoarias começou no Norte de Minas, na década de 80, deu uma tristeza danada. Vi o cerrado sendo carregado, transformado em carvão, viajando em cima dos caminhões. Vi os Iglus de Fogo queimando as árvores. Ora essa, se o cerrado for embora, se ofender o rio, se expulsar o sertanejo, vai tudo embora junto: violas, rabecas, Folias, a vida e a sabedoria curtida durante tantos anos no tempo e ritmo do sertão.

Não posso deixar de citar outro grande mestre: Adão Barbeiro, da cidade de São Francisco. Seu Adão recebia a todos em seu salão, sentado na cadeira de barbear, disparando sabedorias. Quando pegava na viola era uma enormidade. Era guia de uma Folia extraordinária, com a qual tive oportunidade de fazer um grande giro. Seu Adão era daqueles mestres que juntava as pessoas, promovia encontros, trouxe o Reis do Cacete para São Francisco e mais um bocado de assunto. Quando ele faleceu, a notícia veio como uma devastação. A sabedoria que ele carregava era a própria natureza. Essa mesma natureza que estão devastando. O cerrado indo embora, transformado em carvão, tem a dimensão de quando seu Adão faleceu e carregou com ele os segredos dos mestres.

Só de lidar com esse assunto já me dá uma saudade danada do Urucuia. De encostar no seu Manelim, de banhar no rio, assuntar o voo dos papagaios. E também lutar para que todos percebam a importância do sertão. Entender que essa palavra – sertão – não pode ficar apenas no papel, ou na boca das pessoas. Mas que grude na sola do pé, que invada a nossa alma, para que o ponteado de nossas violinhas possa escorrer caudaloso, semeando nossas vidas.

Imagem em destaque: Kika Antunes


* Paulo Freire é violeiro, escritor e contador de causos.

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