A refundação do Sertão no cinema

Como filmes recentes vêm atualizando as imagens do Sertão no cinema brasileiro

Que sertão surgirá na tela branca do cinema, quando apagarmos as luzes e ligarmos o projetor? Quais serão as suas paisagens, seus personagens e suas histórias a nascer nas imagens feitas por filmes brasileiros? A resposta, obviamente, é: inúmeras – em primeiro lugar, pela diversidade de filmes que nosso cinema produziu, desde seus primórdios, sobre o universo sertanejo; em segundo lugar, pela impossibilidade de esgotar esse universo, sendo ele tão vasto quanto misterioso. 

Pela história do Brasil, conhecemos diversas tentativas de incorporação do sertão, nos cambaleantes esforços de ocupação e domínio do espaço – e do povo – sertanejo. Impedir o completo desvendamento de seus mistérios nunca deixou de ser, então, uma forma de resistência e de afirmação das identidades sertanejas. Nas obras do cinema brasileiro (bem como da nossa literatura, das artes plásticas, entre outras expressões artísticas), ao longo do último século, o sertão serviu, mais do que qualquer outro território, como cenário emblemático da riqueza e dos dilemas do país. Assim, mesmo em sua diversidade, tais imagens produziram um importante ciclo em que, por muito tempo, filmar o sertão se confundiu com a busca pela própria identidade nacional sintetizada em cena. 

A importância que o sertão adquiriu no cinema brasileiro se destaca em meados do século XX, quando multiplicaram-se filmes como O cangaceiro (Lima Barreto, 1953) e A lei do sertão (Antoninho Hosrri, 1956). As aventuras de cangaço, feitas de heróis, de lutas e de histórias de amor, constituíram quase que um gênero próprio no nosso acervo cultural. Em seguida, de maneira ainda mais marcante, foi também para o sertão que o cinema se lançou quando nasceu pelo país o nosso chamado cinema moderno. Exemplos célebres são os diretores Nelson Pereira dos Santos (Vidas secas, 1963), Ruy Guerra (Os fuzis, 1963) e Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964), que buscaram em imagens do sertão oportunidades para a fundação de um cinema com marca genuinamente brasileira. 

Nessa produção, é recorrentemente no nordeste brasileiro que o sertão é encontrado, fortemente embalado por representações célebres da literatura e do folclore nordestino na cultura nacional. Não por acaso, algumas das poucas incursões a terras sertanejas de Minas Gerais surgiriam na esteira de um de seus grandes desbravadores literários. O Grande Sertão (Renato Santos Pereira e Geraldo Santos Pereira, 1965), Sagarana, o Duelo (Paulo Thiago, 1973) e Noites do Sertão (Carlos Alberto Prates Correia, 1984) são exemplos de filmes inspirados na obra de Guimarães Rosa. 

O final do século foi, então, um momento importante para a revisão dessa identidade. Depois de alguns anos de baixa produção de filmes no país, a retomada do cinema nacional na segunda metade dos anos 1990 trouxe-nos uma série de filmes como Baile perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997), Central do Brasil (Walter Salles, 1998) e O Auto da Compadecida (Guel Arraes, 1999). Com eles, de diferentes maneiras, retornamos ao sertão para revisitar nossa história e nossos mitos de formação, e traçamos perspectivas do sertão no horizonte.

Cena de Na quadrada das águas perdidas, de
Wagner Miranda.

Desde então, uma nova fase do cinema vem se desenhando, acompanhando as mudanças nas estruturas políticas e sociais do país, o barateamento dos custos de produção e a ampliação dos circuitos de criação e circulação do cinema nacional. Com isso, outras imagens do sertão vêm surgindo e ampliando as dimensões de um território imaginário. Pelo olhar dessa geração no século XXI, mais do que nunca os sertões brasileiros parecem ganhar as telas em seu caráter plural. Nesse meio, quatro filmes parecem especialmente significativos na atualização das imagens do sertão. São, entre si, bastante distintos, ao mesmo tempo em que funcionam como entradas para o mapeamento de outros filmes do cinema nacional contemporâneo.

Um primeiro deles é Narradores de Javé (Eliane Caffé, 2004), que se passa no sertão baiano. Ali, um pequeno vilarejo no fictício Vale do Javé está prestes a desaparecer com a construção de uma represa na região. Ocorre, então, aos moradores que o registro histórico do passado da comunidade poderia fazer reconhecer seu patrimônio e salvá-los da inundação – afirma-se que, se Javé tem algum valor, são as histórias das origens, dos guerreiros e de todos aqueles casos que correm pela boca do seu povo. Cabe, então, a um homem recolher os relatos e botar as letras no papel.

Mas, então, o filme preocupa-se menos em enaltecer o passado, revelar os casos acontecidos, do que nos apresentar à importância que as “lembranças javéicas” adquirem ao nascer nas cômicas e confusas versões da história daquela gente – ainda que seu protagonista, o escrivão Antônio Biá (José Dumont), insista que a história de Javé só terá validade se tiver caráter científico: “Não pode ser essas pataquada que vocês inventam.” Um sertão fortemente conectado às tradições orais e aos mitos sertanejos renasce, pelo filme, na medida em que suas narrativas dão sentido àqueles homens e mulheres no presente. É o processo vivo da fabulação que dá, afinal, a vida a Javé.

Mutum (Sandra Kogut, 2007) nos leva, por uma adaptação livre do conto “Campo Geral” de Guimarães Rosa, ao sertão de Minas Gerais. Ali, não mais encontramos o sertão fabular, mas aquele que nasce na miudeza das coisas, na formação de um redemoinho no quintal, na ventania que avisa a chegada da chuva para que se recolha as roupas do varal, no ruído constante dos pássaros e dos cães de dia, e dos grilos, cigarras e sapos à noite – ruídos que o filme faz questão de acentuar.

Não por acaso, esse sertão melhor se enraíza na vida de uma criança, o protagonista Thiago (Thiago da Silva Mariz). Seus dilemas, sua alegria e sua dor, são melhor compreendidos enquanto o garoto aguarda ansioso a pipoca ficar pronta na cozinha, leva a marmita ao pai na roça, aprende com o tio a montar uma arapuca. Quando o garoto pergunta à mãe sobre como é o mar, ela responde: “É longe daqui”. Mas longe de ser um filme sobre a falta, como nos típicos dramas sociais, o realismo do filme busca encontrar o sertão em cada pequeno momento vivido inteiro por seus indivíduos.

Em outra direção, o filme Viajo porque preciso, volto porque te amo (Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, 2009) refunda uma relação com o sertão de maneira ainda mais radical. Seu território não desenha um mapa fechado como os anteriores. O sertão ali está em movimento, desdobrando-se a cada segundo pela estrada percorrida pelo protagonista José Renato (Irandhir Santos) ao longo dos interiores baiano, sergipano, cearense, alagoano e pernambucano. 

Trata-se, enfim, de um filme de estrada (um “road-movie”), como outros filmes da safra recente. E se tal gênero é marcado pela introspecção dos personagens e por suas jornadas de autoconhecimento, o filme conecta o tempo todo a coleção de fragmentos documentais de paisagens e personagens fugidios aos lapsos de memórias e afetos de quem o conduz. Partindo de uma ânsia de que a viagem seja breve, da solidão dos primeiros dias de estrada e da poeira impregnada na garganta, a viagem sertão adentro torna-se um caminho sem volta: “Não quero que essa viagem acabe nunca”, conclui o personagem.

Por fim, lançado recentemente, Boi neon (Gabriel Mascaro, 2016) amplia o mapa do sertão com um contexto pouco conhecido pelas imagens do cinema. Ele nos leva, no estado de Pernambuco, ao cotidiano de pessoas que vivem no limite entre a aridez e a abundância trazida com os novos centros urbanos e industriais do agreste. Nos bastidores das vaquejadas, uma revendedora de cosméticos chega para, ali mesmo, ao lado do cocho dos bois, recobrir o cangote dos vaqueiros com seus perfumes em promoção.

Sinal dos tempos? Quando não está cuidado dos bois, o protagonista Iremar (Juliano Cazarré) desenha e costura roupas, sonhando com um trabalho na indústria têxtil. A desconstrução do clichê do sertanejo rude e varonil é acompanhada de uma atualização estética do próprio sertão. Com a paisagem natural convivem as interferências artificiais; com o som ambiente, a produção musical da trilha sonora; com as luzes escassas da noite no acampamento sem eletricidade, a luz negra lançada sobre o couro do boi.

Se filmes como esses de fato desenham os caminhos para um novo ciclo de imagens do sertão no cinema brasileiro, talvez com o tempo tenhamos clareza de um projeto que leva a todos a um ponto em comum. Por ora, talvez seja possível afirmar apenas que não temos mais um cinema que vai em busca de seu sertão, mas sertões que fazem nascer os seus cinemas.


O sertão em outros filmes no cinema pós-retomada:

  • Aboio (Marília Rocha, 2005)
  • Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005)
  • Sertão de acrílico azul piscina (Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, 2005)
  • Árido Movie (Lírio Ferreira, 2006)
  • O céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006)
  • Tapete vermelho (Luiz Alberto Pereira, 2006)
  • O homem que desafiou o diabo (Moacyr Góes, 2007)
  • Deserto feliz (Paulo Caldas, 2008)
  • Girimunho (Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina, 2012)
  • Cine Holliúdy (Halder Gomes, 2013)
  • A história da eternidade (Camilo Cavalcante, 2014)

Imagem em destaque: Cena de Mutum, de Sandra Kogut.


*Nuno Manna é jornalista, pesquisador pela UFMG e colaborador da revista Piauí.

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