Ancestralidade e direitos do povo negro

A movimentação das Comunidades Quilombolas no Norte de Minas e Brasil direcionam os passos por nenhum direito a menos

Falar sobre o Norte de Minas sem contemplar as Comunidades Tradicionais é tentar ver de olhos vendados. Inicio pedindo permissão a todas as lideranças negras, quilombolas de nossa região, para tentar retratar a beleza e orgulho que é ser parte deste povo. Com a benção dos antigos e com todo respeito às vidas que se passaram, aceitei este convite da Manzuá, instrumento pelo qual tenho maior admiração. Ao pensar o que dizer, veio à mente a história dos meus avós, pais, irmãos, parentes, amigos e a história do meu filho, refletindo nos olhos dele os filhos de tantas mulheres negras neste espaço/tempo.

Minha mãe escrevia as cartas para os moradores da Tapera, comunidade do município de Matias Cardoso, mais conhecida como Lapinha, que deu o apelido ao meu pai, Geraldo Tapera. Eu era a criança que aos oito anos, recém-alfabetizada, sucedi a minha mãe nesta tarefa. Não sabia que neste momento eu registrava a história da minha ancestralidade. Ouvindo as notícias da roça, passando vagarosamente do oral para o papel os relatos daqueles que ainda estavam morando na área rural. Esta é a primeira lembrança de povo que carrego, o que veio a ser a minha missão como adulta, levar a mensagem das comunidades para frente. Reconheço e admiro isso.

Traçar a força do sertão a partir da cadência dessas comunidades me dá segurança para dizer que estamos caminhando a passos firmes e seguros. Enquanto escrevo este texto ocorre a publicação da Resolução específica para Docência em Escolas Quilombolas de todo o Estado de Minas Gerais. Há muito o que comemorar. A partir de agora, quilombolas terão prioridade para lecionarem em sua própria comunidade. Curiosamente, uma resolução traçada por uma equipe majoritariamente de mulheres negras. Não será uma descrição de faltas, definitivamente. Este espaço será uma descrição de força, de otimismo e de orgulho de todo o processo histórico que vivemos. A cada dia que passa temos mais consciência dos direitos individuais e coletivos, a cada dia mais e mais jovens quilombolas se autoafirmam como tal e se jogam no caminho de enfrentamento da desigualdade. O cenário visto é de transformação, de realização, mesmo com tantos ventos contrários.

Percorri durante os últimos 15 anos o Vale do São Francisco, além de ter nascido nele. Sou a parte otimista da história. Acredito piamente na formação desta rede de saberes das comunidades ligadas culturalmente, no mais amplo sentido que a cultura representa. Acredito também no fortalecimento da Política Pública considerando a identidade e especificidade de cada comunidade, na leitura da vida adaptada ao semiárido, nas pesquisas voltadas à saúde da população negra, no investimento em literatura e material didático específico sobre a cultura local e saberes tradicionais. Além disso, creio na necessidade do incentivo aos jovens para estudarem infinitas possibilidades de profissões com o ingresso em faculdades das mais diversas áreas. Acredito em um Poder Público municipal sensível à história de cada comunidade, com planos ligados ao reconhecimento e incentivo à regularização territorial. Parece óbvio, não é mesmo? Parece tranquilo pensar em oportunidades. Mas não é.

Quando se trata de direitos adquiridos para a população negra no Brasil, o que parece óbvio está muito mais para uma saga com direito a comemorações dos avanços a cada milímetro percorrido. A cor negra da pele, o sotaque, a aspereza da terra, as limitações de acesso àquilo que socialmente parece fundamental fazem com que nossas comunidades estejam longe de terem direitos fundamentais resguardados. Falamos de comunidades que ficaram séculos à margem de discussões simples sobre a própria vida, que tiveram terras tomadas, casas demolidas, territórios não respeitados.

O tempo é para que nos amemos, todos nós! Quilombolas de todo o norte de Minas, mestres de reis, tocadores de caixa, cantores de ladainhas, dançarinos de lundu, curadores de animais!

Não podemos aceitar que os desmontes institucionais – em meio à fragilidade da nossa infantil democracia–, uma ameaça constante de perdas de direitos, estremeça os corações daqueles que fazem o sertão renascer a cada chuva. Este é um chamado a todas as comunidades quilombolas: uni-vos! Saiam das porteiras imaginárias! Avancem nadando contra a correnteza! Com seus bancos de sementes, suas danças e seus credos, sua força vibratória íntima que enlaça com os ancestrais africanos, com sua resistência, palavra de ordem das comunidades, com sua vontade de viver. Uni-vos!

Saudando o grande Rio São Francisco, amigo de todos os outros que o fortalece, um grande salve a todas as comunidades quilombolas do sertão, vencedoras por natureza, fortes por bravura, felizes por teimosia. Que consigamos juntos construir um país melhor com oportunidades iguais para todos.

Imagem em destaque: Comunidade Quilombola do Onça, no município de Januária. Foto: Maria Ribeiro


* Janaelle Neri é articuladora do Vale dos Quilombos, consultora em Projetos Sociais e Administração Pública, gestora do projeto Cidadania Ribeirinha da ALMG, negra e mãe.

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