Queridos leitores da Manzuá
Escrevo esta carta para contar que quando minha filha voltou do Caminho do Sertão trouxe uma porção caprichada de baru e eu matei as saudades do Cerrado e do Sertão. Fiquei a pensar como uma semente pode trazer lembranças do rio Urucuia, rio Pandeiros, de Arinos, de Sagarana, da Serra das Araras, da Chapada Gaúcha, de sua gente, de veredas, de pó e poeira de outras travessias. Não esqueço o gostinho gostoso.
Agora na pandemia da Covid-19, estou quietinha em casa e recebo uma chamada de Marcela e Damiana para escrever sobre o baru. Como num passe de mágica me desloquei para Sagarana em 2019. Mês seco, muita poeira de vestir corpo e roupa. A igrejinha destacava numa das pontas do quadrado; na outra, o campo de futebol, goleadas de terras que voam com a ventania. As casas com suas janelas fechadas abrigavam do calor e do pó. A cachorrada pachorrenta, ao contrário, deitava e rolava. Como um filme no CineBaru, escutei com a visão e ouvi com os olhos as entrevistas com famílias de catadores de baru.
Entre cantos de passarinhos formosos, uma galinha cacareja, dá seu recado – botei ovo, botei ovo, botei ovo. O galo ao lado canta altivo, dono do terreiro. Nesse musical sertanejo, as meninas de gravador à tiracolo e a fotógrafa registram a prosa boa como o fruto. Num piscar de olhos e ouvidos, a gravação me transporta para a mata. A caminhada de Cassu e Antônia nas folhas secas revela a secura da estação, a trilha estala até o pé de baru.
Uma árvore frondosa, com copa larga de grande sombra.
Em julho e agosto as folhas começam a cair, o pé peladinho e as flores em cachos desabrocham brancas com miolos cor-de-rosas. Uma belezura. O fruto de cor castanho vem na sequência e exige ferramenta para que se extraia a semente envolta numa casquinha dura. Antônia diz que “às vezes a quebradeira elétrica não dá certo, não funciona”. O povo descobriu um jeito prático e manual de quebrar o fruto. Pode ser com uma foice adaptada em cabo curto, que funciona como alavanca, ou com uma lâmina de corte fixa e justa entre dois blocos de madeira. Com um golpe certeiro no meio do fruto, ele se parte e revela a semente, uma única amêndoa marrom e compridinha envolta em polpa. Quando maduro, cai no chão e vai até outubro. A sabedoria popular alerta que “esperar o baru cair no chão é o mais importante, pois fica sequinho e fácil de quebrar a casca. Se pegar antes no pé, e verde, a dificuldade para quebrar aumenta. Novembro e dezembro não têm mais fruto. Às vezes as chuvas modificam o ciclo e tudo pode adiantar”.
Com tanta experiência, Antônia, que já foi boia-fria, conta que desde os 10 anos cata, quebra e come baru. Hoje vive só de vender o baru. Na estrada, anuncia a venda. Escreveu numa placa seu nome e telefone. Reconhece que o comércio anda concorrido, “todo mundo panha baru”. E acrescenta: “a plantação não está dando mais. Eles metem o trator, viram a terra e aí ela fica fraca. O trator corta a terra e quando vem a chuva leva tudo. Antes colhia arroz, mandioca, hoje tenho de comprar tudo”.
A extração do baru ocupa a comunidade inteira de Sagarana. Em Arinos, acontece anualmente, no mês de agosto, a Feira Nacional de Baru onde se comercializa o fruto reconhecido pelo seu valor medicinal, alimentício e econômico. O óleo extraído da amêndoa tem serventia tanto na cozinha como na preparação de cosméticos. O valor nutricional é enorme, rico em proteína, ferro e zinco, serve na alimentação de animais e de seres humanos. A castanha torrada e triturada é ingrediente na preparação de doces, refrescos, paçoca doce e salgada, pé-de-moleque e docinhos variados. A polpa entra na preparação de geleias, licores e bolos. O gado, o porco e os animais silvestres, como a cutia e o morcego, apreciam a polpa aromática e a semente. Atenção deve ser dada a esses animais que também exercem papel importante na distribuição dos frutos e das sementes. A caça indiscriminada significa menos baru, pois a cutia enterra as sementes que não comeu que, esquecidas, acabam por germinar.
A madeira do baruzeiro é altamente resistente e com qualidade fungicida. Por conta do desmatamento indiscriminado, a árvore nativa do Cerrado se encontra ameaçada pelo corte e principalmente pela expansão agrícola. O desmatamento em larga escala tem colocado em risco sua existência assim como a de animais silvestres. O agronegócio caracterizado por extensas plantações de soja se instalou na região. Revira não só a terra, mas a vida das pessoas. Introduziu novas práticas, criou conflitos sobre o uso da água e da terra e interferiu na cultura tradicional. Hoje, a bandeira do povo tem como lema “Pelo Cerrado em pé”.
A prosa continua em outra casa. Seu Argemiro faz brincadeira de perguntas para as meninas adivinharem.
Um é mão, uma é minha.
Eu te conto você não adivinha. O que é, o que é?
Pé de pau, barriga de ferro
Língua de fogo, espingarda seu bobo. O que é, o que é?
Elas passam longe das respostas, sem perceber que a resposta está embutida na própria pergunta. Entre muitas risadas ele conta da “cobra que mora no cupim, jiboiando dentro, fica enroladinha”. Argemiro tem muitos pés de baru em sua propriedade, não depende de autorização de fazendeiro para catar o fruto. Tem horta e pomar, tudo à mão para a subsistência e sem agrotóxicos. A passarinhada canta e o sanhaço, em sua formosura, dá recados de liberdade. Ah, voam pássaros pretos em jograis.
A próxima visita é na casa de Isidoria, especialista em doce de leite com baru. Barulhada danada de chapa de metal no quintal. Isidoria explica que “baru bom é de pegar no chão. Não pode derrubar de vara”. E conta que “vêm motoqueiro e bicicleteiro que passam de vara para derrubar o fruto. O baru não madura de uma vez, vai madurando aos poucos”. Eles não esperam ou não sabem. Reafirma; não pode pegar de vara, tem que pegar no chão.
Enquanto conversa, bate o baru torrado no liquidificador. O som do eletrodoméstico interfere na gravação. Vejo Isidoria às voltas com a panela no fogo fazendo de primeiro o doce de leite. Com colher de pau mexe sem parar, mexe sem parar, mexe sem parar… Até chegar devagar no ponto, “dando rapinha”, como ela diz. O fogo dá uma caloria e não pode parar de mexer. Passa a receita e continua mexendo o doce sem parar, muito quente, quente demais. Observo de longe a trabalheira para fazer. Para não talhar o doce, revela que coloca garfos dentro da panela. “Não talha de jeito nenhum”. Trabalhoso também, segundo ela, é cascar o baru, quebrar o fruto duro para tirar a castanha. Depois, assar o baru no forno de lenha e bater. Só depois do doce de leite pronto, no ponto, acrescenta a farinha de baru. Isidoria faz o doce macio para comer de colher ou mais seco para servir em pedaço. Ela acha que o gosto do baru tem sabor diferente do amendoim. Confessa que antigamente “quando passava necessidade, sem arroz e sem feijão, tinha baru e coco macaúba para comer”. Completa: “para mim foi baru toda vida. Antes desperdiçava debaixo dos pés. Hoje dá briga. Fazendeiro não deixa pegar. Baru virou comércio. Quando deixa pegar é à meia, cinco sacos para o catador e dois para os fazendeiros. Meus netos não sabem pegar baru. Não foram incentivados a comer baru, o que se aprende a comer de pequeno”.
Com o doce pronto, vou esperar chegar a minha vez de ganhar um potinho.
Com um abraço apertado em cada um de vocês,
Belo Horizonte, 23 de agosto, com um frio de lascar queixo.
Mônica Meyer
Imagem em destaque: Kika Antunes
* Mônica Meyer é bióloga, professora aposentada da UFMG, escritora e estudiosa da Natureza em João Guimarães Rosa.