Sertão adentro, 170 quilômetros a pé. Esse era o trajeto proposto pela 3ª edição do Caminho do Sertão, uma caminhada socio-eco-literária, que aconteceu entre os dias 2 e 10 de julho. O Caminho trilha parte do percurso feito pelo bando do personagem Riobaldo rumo ao Liso do Sussuarão, no livro Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
“Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia”. Guimarães não podia estar mais certo. Ao escrever esse diário de bordo, busco a minha travessia e volto a caminhar na memória, nas conversas, nos risos e choros, nos dias quentes, nas noites frias, nos cheiros, sabores, nas cores. Volto a nadar nas veredas, a comer o fruto do buriti, a me aquecer na fogueira, a entender a completude do Cerrado, a poesia do sertão.
Já estava em Sagarana quando chegou o primeiro dia do Caminho. No início da tarde, nos encontramos para ouvir os primeiro comandos e nos apresentar. 67 caminhantes, cada um com uma história de vida. Professores, escritores, artistas. Uma francesa que veio ao Brasil para trabalhar com o acesso à terra e um brasileiro que morou em Israel para mediar conflitos entre israelenses e palestinos. Profundos conhecedores de Guimarães Rosa, como o Elson, capaz de recitar páginas inteiras de Grande Sertão: Veredas, e a caminhante que tatuou um mapa com o trajeto de Riobaldo no antebraço. Pessoas que fariam o caminho para se reencontrar com o passado e outras que buscavam respostas para o próprio futuro. O clima era de confraternização e ansiedade, sob o lindo céu estrelado de Sagarana. Depois de um breve encontro no bar, fui dormir pensativa. Tentava entender – para além da narrativa – de onde viria isso que transforma, isso que faz as pessoas suspirarem quando falam do sertão, que faz mudar o rumo dos próprios pensamentos após os dias de caminhada.
Eram 4h da manhã e vivemos um ritual que se repetiria ao longo dos dias: comida, alongamento e avisos. Comecei em silêncio, no “primeiro pelotão”. Foi a única vez que forcei o ritmo – até por não conhecê-lo muito bem. Três horas depois paramos para beber e comer. Duas horas mais tarde paramos de novo. Duas horas depois, paramos também. Dessa vez o carro de apoio chegou com uma caixa de geladinho. Achei aquilo surreal. Percebi que a caminhada envolvia esforço e desfrute. Senti uma enorme gratidão por toda a equipe. Dali em diante, parei de controlar minhas passadas e deixei meu corpo e minhas sensações serem os verdadeiros guias. A caminhada ganhou outro ritmo e passei a cruzar as pessoas e aproveitar melhor as conversas. Na chegada, os ex-caminhantes nos esperavam com um balde de água do rio Urucuia, jogado na nossa cabeça como um ritual de batismo, uma iniciação. Recebi minha baldada com um sorriso no rosto. Vi o rio Urucuia mais a frente e hesitei por um momento, mas ignorei as ressalvas e entrei de roupa e tudo em suas águas verdes. Atravessamos o rio de balsa para chegar ao primeiro pouso. Montamos as barracas e jantamos. O corpo esfriou e as dores começaram. A noite seria de fogueira e apresentações. Caí no sono.
Acordei sorrindo ao som de uma linda música, voz e violão. Demorei um pouco pra raciocinar sobre o que estava acontecendo. Olhei o relógio. 4h30 da manhã. Arrumamos barracas e malas no escuro. Saímos do acampamento junto com o sol. No início, passamos por plantações enormes, com maquinários pesados que jorravam água e mais água para todos os lados em um sertão que sofre de sede. As dores do dia anterior voltaram com o tempo. Na metade do caminho, parte do grupo já tinha entrado na kombi ou subido na moto em algum trecho. Eu relutava. Estava sozinha, concentrada, testando técnicas de respiração. Sentei no chão. Algumas pessoas passaram por mim. “Sim, estou bem, só descansando”. Meu pé latejava. Um dos caminhantes chegou mais perto. Empunhou o pife e tocou um forró lindo de se ouvir. Sem falar nada, me estendeu a mão. Levantei. Nos abraçamos e seguimos. Encontramos cinco companheiros logo a frente. Um deles chegara naquele dia e, pela manhã, zombava das nossas dores. Naquele momento estávamos juntos, gemendo de dor. Foi o percurso mais sofrido e, ao mesmo tempo, mais engraçado. Alternamos gritos de dor e gargalhadas, perguntas de “quanto falta?” e tentativas infrutíferas de mudar de assunto. Tivemos alucinações: vimos o céu girar e poças d’água surgirem na terra batida. Gargalhamos de novo. Quando chegamos, fomos direto para um colchão e dormimos apoiados uns nos outros, como filhotes aninhados. Acordamos dez da noite, juntamos força – um analgésico – e fomos pra rua. Quase não acreditei quando me vi dançando forró depois de andar 42 km. Mas foi irresistível. Vivi aquela satisfação de quem sente que está no lugar certo, na hora certa. Aprendemos a cantar o refrão de “peru da bananeira” enquanto sertanejos e alguns caminhantes se arriscavam nos versinhos. Fui dormir as duas da manhã, feliz como um pinto no lixo.
O dia seria tranquilo, para compensar o anterior. Meus pés ainda doíam muito. Por sorte, em três horas chegamos a uma linda cachoeira, com quedas pequenas e uma piscina natural. Aquele cenário celebrou a percepção de que o sertão é farto, mas é desconfiado, como são os filhos da sua terra. Água, flor, fruto, fauna, tudo tem, mas é preciso calma para desvendar os seus segredos. Foi uma tarde feliz, cachoeira, churrasco, forró e samba. Antes de ir embora, alguns caminhantes aproveitaram o suco de tamarindo que sobrou no almoço e misturaram à cachaça. “É o único jeito de continuar sem sentir dor”. Partimos às 3h da tarde e seguimos sem pressa até o casarão da Fazenda Menino. No quintal, dona Geralda nos esperava, ajeitando os cabelos brancos e crespos em um rabo de cavalo, com o bom humor de quem gosta de ver a casa cheia. À noite nos reunimos para ouvir a história da Fazenda Menino. Na década de 1950, o local foi comprado pelo alemão Max Herman, que passou a reunir ali figuras importantes como Leonel Brizola, João Goulart e Oscar Niemeyer. Geralda chegou em 1968 e, durante a Ditadura Militar, teve de aguentar as “visitas” frequentes de militares: interrogatórios, abusos e ameaças de morte em troca de informações sobre o comunista. A história seguiu, mas meu cansaço chegou cedo, mesmo no dia mais tranquilo da caminhada.
A partir dali incluímos no ritual da manhã uma fila de caminhantes atrás do Bergues, que cuidava dos machucados como ninguém. Surgiu uma bolha no meu mindinho e eu quase não conseguia pisar no chão, mas deixei a fila para trás. Passei 13 km sentindo meu dedo a cada passada. Chegar na vereda foi o melhor remédio. Aquele lugar era um oásis no sertão. A areia branca abria caminho a um rio de correnteza tímida, com águas transparentes, e os buritis faziam uma sombra refrescante. Seguimos por mais algumas horas e chegamos na casa de dona Maria. Aquele era um pouso especial. Sem vizinhos, luz ou água encanada. Estávamos no meio do nada e, ao mesmo tempo, era como se estivéssemos no centro do mundo. O banho? Em outra vereda, no fundo do quintal. Depois do almoço tardio, um cochilo. Logo o pife começou a soar. Chegou outro, e pandeiro, e zabumba, e mais pandeiro, e então éramos dezenas, entre caminhantes e sertanejos, tocando forró e dançando quadrilha, já no início da noite. A festa espontânea foi interrompida quando anunciaram que o caldo estava na mesa. Ao redor da fogueira, com cumbucas na mão, alguns falaram sobre a conexão com seus ancestrais. Outros sobre os mitos da história – nem sempre oficial – do nosso país. Muitas falaram sobre a força das mulheres do sertão. Um grupo pequeno driblou o sono para tocar uma viola. Eu sempre me deparava com a difícil escolha de ir dormir ou ficar acordada. Nessa noite, o céu estrelado escolheu por mim.
Acordamos e fazia frio. Meu mindinho doía muito. Acabei na fila dos caminhantes a espera de cuidado e ganhei um curativo poderoso. Foi um dia de muitas paradas e uma sensação constante de baixo rendimento. Outros dois caminhantes e eu pegamos uma carona rápida (e divertida) em um trator. Por um problema de logística, a comida foi para outro lugar. Foi difícil seguir com fome, mas importante entender que o sertão pode pregar suas peças. Seguimos caminho e chegamos a um rio de águas claras que corriam em cima da terra marrom. 85% dos caminhantes eram mulheres e naquele rio, nos juntamos para falar sobre corpo, cabelos, pelos, beleza e força. Logo depois fomos para o mirante que traria uma das paisagens mais lindas de todo trajeto. Uma planície enorme salpicada de árvores de todas as tonalidades de verde. Ao longe, um caminho de buritis, que fazia curva com as curvas da água. Parecia o mapa do livro Grande Sertão: Veredas, aquele, tatuado no braço. Chegamos à noite, passando por pontes estreitas e curvas fáceis de se perder. No pouso, moradores nos esperavam para fazer a festa, mas ainda era preciso comer e tomar banho, missão que se estendeu por horas, por causa da fila do banheiro. Passei na fogueira no fim da noite, acostumada a aquecer os pés no fogo antes de dormir.
Todos os dias, antes de começar a andar, recebíamos dos ex-caminhantes uma folha com alguns dizeres sobre o dia. “O tempo do Sertão muda o entender das coisas.” Chorei. Era o último trecho. Demos as mãos e cantamos juntos a canção que nos acordava. Amanhecer, Rubinho do Vale. Escolhi estar sozinha nos primeiros quilômetros. Depois da primeira parada, começamos a travessia do Vão dos Buracos. Durante a descida passamos por mirantes, cursos d’água, corredores estreitos. No chão, uma areia muito fina, colorida, rosa, laranja, amarela, até se transformar em um dourado intenso. Um caminho de ouro, lindo de se ver. No fundo do vale, vivi a sensação de estar em uma paisagem intocada, meio Parque dos Dinossauros. O rio Pardo corria devagar. Os buritis ali, sempre a seguir a água, com seu tronco alto e suas folhas arqueadas. No sertão, vereda é rainha, buriti é rei. No caminho, seu Argemiro repetia o cantar dos pássaros e “tatuava” nosso braço com o contorno de uma folha que soltava tinta quando pressionada ao corpo. Depois de um almoço com direito a cochilo, garapa e rapadura, começamos a subir o Vão. As cores da areia faziam a festa embaixo dos nossos pés. Ao reler os dizeres desse dia, entendo melhor as palavras escolhidas. “As cores brincam e trocam de lugar, sozinhas. A magia da travessia. Eu vi como era feliz estar aí no meio do nada. Memória boa, Sertão guarda”. Apelidamos a reta final de “reta da morte”, ansiosos pela chegada que não chegava nunca. Brincamos e cantamos, sem parar, para passar o tempo. Todos foram recebidos com gritos e aplausos ao pisar no asfalto de Chapada Gaúcha. Entramos juntos no pavilhão do Encontro dos Povos do Sertão, evento que celebra os saberes e fazeres do povo sertanejo. Enfim, chegamos! 170 quilômetros. A pé (e uma caroninha no trator).
Acordar tarde e calçar os chinelos. Há quanto tempo! Foi dia de andar devagar e tomar café da manhã na feirinha. Biju e biscoito quebra-quebra. Mais tarde, no Encontro dos Povos, aconteceu uma mesa sobre Turismo de Base Comunitária. Um dos responsáveis pela criação do Caminho do Sertão, Almir Paraca, contou um pouco da história do projeto, que parte do entendimento de que para preservar é preciso conhecer. Algumas pessoas se arrumaram para caminhar com os guias até o mirante do Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Eu preferi dar uma volta. A noite foi de apresentações de folias, rodas, Manzuá e marujada. No show das Diadorinas, dançamos coco até suar a camisa.
A caminhada terminou na manhã seguinte, depois de uma conversa emocionada entre os caminhantes. Já o texto, termina incompleto, certa de não conseguir explicar o que precisa ser sentido. “Aquela travessia durou só um instantezinho enorme.” Guimarães não podia estar mais certo. De novo.
Imagem em destaque: Carolina Kina
*Juliana Afonso é jornalista e integra o projeto Cinema no Rio São Francisco