Carinhanha, terceira margem

Percorremos o maior afluente da margem esquerda do São Francisco, da nascente à foz

“Como tem o princípio, tem o fim. É, sim, senhora. E aí até que o princípio já não é o fim. E nem o fim é o princípio. Cês entenderam, né?”. João de Alta elaborava seu aforismo satisfeito com a audiência. Sentadas no sofá, nós tomávamos o quinto café do dia, ouvindo o que ele dizia. “Mas agora eu vou perguntar à senhora: onde que é o meio do rio?”. Apertei o ouvido, levei o gravador para mais perto dele. O meio do rio. “A senhora não sabe, não? Não sabe onde é o meio do rio?” Teodora, sua esposa, olhava cúmplice. “Pois eu vou contar pra vocês: o meio do rio é o ‘i’!”. A gargalhada de João ecoou na sala inteira. “Quer dizer, a senhora veio achando que eu sou bem instruído, mas não sou não, senhora. Sou analfabeto”, debochou.

De pele queimada, barba e cabelos brancos, João de Alta vive com Teodora no assentamento Rio dos Bois, vizinhança do Parque Nacional Grande Sertão Veredas no município de Chapada Gaúcha, noroeste de Minas Gerais. “Eu nasci e criei aqui nesse local. É, sim senhora, nesse lugar. Nunca mudei. Estudei em Januária um pouquinho pra enxergar esse segredo dessas 26 letras. Mas muito mal, só mesmo pra quebrar o galho”, ele conta. O rio Carinhanha passa a poucos metros da casa, formando corredeiras entre as pedras. “O que eu mais gosto na Carinhanha, ah, senhora, vou falar o que eu mais gosto: é a água”, ele gargalha outra vez. “A senhora entendeu?”.

A Carinhanha corre farta nos fundos da casa de João de Alta, no Assentamento Rio dos Bois. Foto: Kika Antunes

Sua mãe se chamava Altamira, daí o complemento que o acompanha nos arredores do rio dos Bois: João de Souza é João de Alta, sempre foi. Sua filha, Maria de Souza Luz, carrega a linhagem familiar completa: Maria de João de Alta. Quando se casou, 30 anos atrás, ela subiu o rio: foi morar alguns quilômetros acima, na Estiva, com o companheiro Berto. A Carinhanha nasce ali pertinho, dentro do parque – o princípio do rio, como diria seu pai. Na Estiva, a água ganha corpo, farta. Maria tem os olhos da cor dessa água que corre no fundo de casa, um marrom-esverdeado brilhante e molhado.

Comemos frango com pirão em sua cozinha grande, panelas areadinhas na estante, filtro de barro com água fria. “Hoje a gente tem essa comida aqui feita por causa da água, né. Porque se não tivesse ela, não lavava uma vasilha, não fazia uma comida, porque todas as comidas precisam da água. Toda coisa, né, que a gente se usa. A coisa mais preciosa é esse rio”. Descemos para conhecer o rio, Maria levou um lençol para fazer as fotos. “Tem vez que a gente vai pro rio, a gente chega ali com aquela tristeza, né. Essa coisa que está cansada. Já tive isso também. Aí eu fico ali pensando em entrar nela, tem hora que ela tá até friinha, né. Aí eu fico ali, coloco o pezinho lá nela. Primeiro molhando os pés pra poder entrar nela. ‘Ô, minha linda, cê tá tão gelada’. Ela fica olhando pra mim”, ela ri. “Ela fica me ouvindo”.

No Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, Riobaldo descreve a Carinhanha como um rio “quase preto, muito imponente, comprido e povooso”. O geógrafo Gabriel Oliveira vê um tom de mistério na referência ao rio, por ser uma das últimas referências geográficas envolvidas na travessia do bando de jagunços pelo Liso do Sussuarão – o deserto que “não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era um escampo dos infernos”. “Rosa situa a Serra das Araras, o Vão dos Buracos, o rio dos Bois, o Pandeiros. Mas nos limites do rio Carinhanha, é como se ele entrasse em um mundo meio imaginário, um deserto fora da realidade”, Gabriel elucubra, sobrepondo a realidade da geografia à ficção do escritor.

Em seu relato, Riobaldo narra duas travessias do Liso, rumo aos fundões da Bahia. A primeira, sob o comando de Medeiro Vaz, é descrita como um pesadelo – “pesadêlo mesmo, de delírios”. À medida que os jagunços adentravam o raso, toda a sorte de vida ia minguando: acabavam-se as mangabaranas e mangabeirinhas, o capimzal, o sapé brabo. De animais, nem os excrementos. Era o “miôlo mal do sertão”, o silêncio e o sol castigando os corpos exaustos dos homens. Já a segunda travessia foi liderada por ele mesmo, Riobaldo, então Urutú-Branco. Dessa vez, o bando concluiu a missão “sem os mais notáveis sofrimentos”. O caminho se economizou: o céu enuveou, encontraram veados gordos, zum de abelha, folhagens, água. Em nove dias, o bando saía do Liso quaso ileso, atravessando o Alto Carinhanha.

No mundo físico, a Carinhanha acompanha a divisa dos estados de Minas e Bahia por um bom pedaço do mapa, até desaguar no São Francisco, na altura da cidade baiana de Malhada. Localizado à margem esquerda do Velho Chico, é um dos afluentes mais relevantes da bacia. “Dos rios próximos, Japoré, Itacarambi, ele tem uma característica diferenciada, que é justamente a quantidade de água disponível”, explica Fábio Figueiredo, professor do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG. É um colaborador direto para a vazão do São Francisco, principalmente em suas lagoas marginais, que são importantes espaços de procriação das espécies de peixes da bacia.

Por boa parte de seu leito, o rio Carinhanha divide os estados de Minas Gerais e Bahia. É um dos afluentes mais importantes da margem esquerda do São Francisco. Foto: Kika Antunes

Além disso, ela alimenta o Aquífero Urucuia, um dos mais importantes do Brasil. Aquíferos são como massas de água subterrânea, que podem ser contínuas ou fragmentadas, mas são sempre abastecidas pela chuva. Como explica Cláudio Pereira, “A chuva cai, infiltra no solo, recarrega o aquífero. Daí surgem as nascentes, que alimentam constantemente os rios que formam a bacia hidrográfica”. Cláudio é morador da comunidade quilombola de Lagoa das Piranhas, em Bom Jesus da Lapa, e coordenou a Câmara Consultiva Regional do Médio São Francisco (órgão do Comitê de Bacia Hidrográfica do São Francisco) até o ano de 2016. Ele esclarece que, para que a bacia esteja em equilíbrio, as chamadas áreas de recarga devem estar protegidas, possibilitando a infiltração da água e a recomposição do ciclo.

Da Estiva ao dos Bois, quando vão falar do rio, as pessoas dizem “ela”, “a Carinhanha”, no gênero feminino. Perguntei a Maria de João de Alta por quê. “É porque sempre a gente trata assim, né. Dizendo, a gente. Agora eu não sei se é certo ou se é errado. Mas é ‘ela’, mesmo”, ela garante. “Ali mesmo do lado da Bahia tem um rio, um Jataí, chama Jataí, né. Quando eu entendia por gente o nome dele já era esse. Tem a Onça, que cai na Carinhanha também. Tem a Estiva aqui. Lá embaixo tem o Boi. E lá pro rumo da Bahia tem aquele Itaguari também, que também derrama na Carinhanha. É um rio bastante grande”. Maria explica que o nome do rio, no feminino, puxa todos os artigos para concordar com ele – ou com ela, no caso.

Aleixo Feliciano Souza, morador dos Patos, alguns quilômetros rio abaixo, tem uma tese diferente. “Nossa língua não é assim igual cês soletram!”, ele argumenta. “Então fala ‘a Carinhanha’, outra hora fala ‘o rio’”. De fala rápida, Aleixo é uma liderança na comunidade: foi ele quem articulou o plano para trazer luz elétrica para o povoado. É também o guardião da biblioteca comunitária, diante da qual posa para foto sem muita cerimônia. Patos pertence a Januária, mas está mais próxima da sede de Chapada Gaúcha. Nos arredores, todas as comunidades são banhadas por afluentes da Carinhanha. “Aqui nós somos 130 famílias. Todo mundo é servido desse rio, o Carinhanha. Mas nessas comunidades tudo tem um córrego. Tem o Pardo, tem o córrego Suçuarana, tem o córrego Jardim, que vocês vão passar. Tem o córrego Angical”, ele descreve. “Então, esses rios vêm tudo lá de fora pra jogar dentro dele. Eles cai tudo dentro dele aí, na Carinhanha”. Nos Patos, o gênero do rio começa a ganhar uma ambivalência diadorina: Aleixo oscila o tempo todo entre o feminino e o masculino.

Aos 63 anos, ele lembra das feras do rio, os bichos brutos que povoaram sua infância. “Naqueles tempos ele era um rio muito forte de água. Tinha toda natureza, assim, de criação, de coisas brutas, do mato. Tinha o jacaré. A gente via na beira no rio, eles faziam aqueles ninhos de folha. A gente passava na beira do rio, via aquele montão de folha. ‘E pra quê que é isso?’. Aí mãe falava com nós, ‘isso é o ninho do jacaré, menino, encosta lá não, que senão eles correm atrás d’ocê’. Mas mesmo assim a gente ainda ia atentar lá pra ver”, ele conta. E via? “Via. O ovo dele é a mesma coisa do ovo de galinha. Tem aqueles ovão grandão, aqueles ovão grande. A gente ia lá com um pau, empurrava e ele ficava lá fora olhando, lá. Ia devagarzinho, devagarzinho, até conseguir arribar. Aí puxava o ovo ali pra fora. E ele ficava lá”.

Aleixo conta, não sem contrariedade, que seus filhos já não conhecem esses bichos. “Hoje cê passa aí, no lugar que você via as matas, cê via muita coisa aí da cultura, assim, dos bicho bruto e não vê mais. Porque limparam tudo, a beira do rio ficou limpa. Não tem mais remanso, que remanseia a água. A Carinhanha virou praia”, ele constata. “Naquele tempo, tinha a fera que a gente falava, aquela outra bichinha que era muito tarasca, a lontra. Hoje você não vê mais. A lontra, ela chamava de atacamento, a mãe não deixava banhar no rio, porque ela atacava a gente. Uns chamam a lontra, e outros chamam uma tal de jaquatiri. Ela é valente, ela tem um papo amarelo e tal. Às vezes a gente tava na beira do rio banhando, batendo, ela pensava que era outro coisa, um peixo, uma coisa assim, e aí ela vinha pra atacar. E a gente corria dela”.

Em um salto rio abaixo, na comunidade de Salobro, Antônio da Silva Gramacho também conta como as feras que já encontrou na beira da Carinhanha foram ficando raras com o passar dos anos. “Se eu falar que tinha onça aqui, quero ver quem vai acreditar. Eu quero ver esse jovem aqui de dez anos pra cá dizer que conhece um gambá”, desafia o Véi, como é chamado pelos netos. Reunidas em roda debaixo de um pé de manga, diferentes gerações da família Gramacho nos receberam com peta, cafezinho e suco de tamarindo. Salobro pertence ao município de Côcos, na Bahia. Atravessada pela Carinhanha, divide-se em Salobro mineiro e Salobro baiano. Tem um jeito de roça próspera, árvores verdinhas, criações bem engordadas, pequenas rodas d’água acompanhando o leito do rio. Analdina Rosa Gramacho é a matriarca da comunidade. “A gente dorme e acorda, parece que tá sonhando com o rio”. Dina, como ela se apresenta, explica que a vida produtiva por ali gira mesmo em torno da Carinhanha: é com a benção dessa água que as famílias criam gado, produzem farinha, rapadura, feijão.

Tiago Gramacho da Silva tem pouco mais de 20 anos e já é uma liderança local. Frequenta reuniões do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e mora na cidade – mas não falta aos encontros de domingo, entre celebrações religiosas, reuniões de mobilização política e o namorico com a prima, que acontecem todos ali mesmo, debaixo no pé de manga. Mesmo jovem, ele diz que o rio já não é o mesmo de sua infância, onde todos os primos aprenderam a nadar. “Tio Beto era o mestre”, ele conta, entre risadas dos outros tios e tias. Beto explica o método: “A gente levava eles na correnteza e soltava. Aí deixava eles lá, os meninos iam mergulhando, meio afogando – mas eu acompanhava. Se precisasse, eu tirava. Umas duas ou três vezes, já tava sabendo nadar”. Thiago certifica: “Que aprendia, aprendia!”.

Banhar na Carinhanha sempre foi a grande alegria das crianças. Tantas brincadeiras giravam em torno do rio, algazarras molhadas e barulhentas que a família relembrou naquela tarde. “Tinha uma brincadeira também de galinha d’água. Pegava uma pedrinha, ficava cá de fora aquele monte e falava umas coisas. Jogava essa pedra na água, agora mergulhava tudo pra rancar. Quem pegasse a pedra, comia a galinha”, rememorou Maria Neto Gramacho Silva, a Neta. Antônio também recuperou algumas memórias: “No meu tempo, a gente atirava capivara. Juntava uma turmona, de uns oito ou dez, ficava lá no ponto. Os de lá faziam de conta que eram as capivara. Os de cá, de fora, atiravam. Quando um atirava, fazia ‘pá!’, aí os de lá pulavam tudo dentro d’água e os de cá iam dar a carreira pra pegar”. “Até eu criança, eu lembro, eu e meus primos aqui, a brincadeira nossa no rio era Leu, era mergulhar”. Thiago conta de uma espécie de pega-pega dentro d’água. “O leu era o seguinte: um era a tóda, que chamava e os outros falavam ‘leu!’. Tóda é aquela que tem que pegar o outro pra passar. Cê pegou, a outra pessoa vai ser a tóda e agora você vai estar junto com os outros correndo”, ele explica. A brincadeira ficava mais difícil (e mais interessante, é claro) em tempo de chuva, quando a água do rio descia barrenta, tornando o rio um sem fim de esconderijos.

Em Salobro, já perto de sua foz, a Carinhanha torna-se “ele”. A ambiguidade parece percorrer a Carinhanha em vários sentidos. Rio macho e rio fêmea, Minas e Bahia. O meio do rio. Por essas bandas, o artigo feminino é guardado para a cidade que ganha seu nome, já depois do encontro com o São Francisco. Hoje com pouco mais de 30 mil habitantes, Carinhanha tornou-se município no início do século XX. O casario à beira do Velho Chico traz memórias do tempo em que a cidade era referência regional, ponto de parada dos grandes vapores e da finada linha aérea Petrolina – Salvador, operada pela Varig. O nome mesmo vem do rio. Diz-se de uma junção entre um tal peixe Cari, um dos nomes que recebe o popular Cascudo, com a ariranha, parente da tarasca lontra – ambas espécies que habitaram o rio. Outra história remonta à possível tradução da expressão “loca de sapo”, em uma das línguas indígenas dos povos que ocuparam a região.

Às oito da manhã, a banca de pescadores na feira de Carinhanha já estava em polvorosa. Um motoqueiro encostou no passeio, dirigindo-se a um dos homens que limpava os peixes. “Ô Dão, aí tem surubim?”. Quem responde é João Pereira Leite, o Dãozinho: “Tem não, Leo Albino!”. “E Caranha?”, o outro insiste. “Só Curimatã!”. “Ah, pescador não quer pescar mais!”, ligando o carburador da moto. “Ô, se a vontade fosse…”. Dãozinho não pesca – compra o peixe dos companheiros e revende na feira. “São diferentes, os peixes do Carinhanha e do São Francisco”, ele explica, enquanto descama um peixão cinzento de olhos esbugalhados. “A cor da escama do rio Carinhanha, ela é mais escura. Porque no rio São Francisco a água é barrenta, né. São as mesmas espécies, mas o peixe é diferente”. Dão comenta que antigamente a região ostentava uma grande diversidade de espécies de peixes. Dourado, Surubim, Pacu, Curimatã, Matrinxã, Piau verdadeiro, Traíra. Mas quem mora por aqui percebe que eles vêm minguando, tanto na quantidade, quanto no tamanho.

“Naquele tempo que tinha rio bastante, água bastante, eu tinha prazer de ir na beira do rio pra ver os peixes. Tinha aqueles peixão maravilhoso”

“Óia lá, o remeiro!”, alguém apontou. Feliciano Rodrigues dos Santos passava de bicicleta, comprido e boa praça. Hoje com 69 anos, Fissu remou a vida toda, no São Francisco, na Carinhanha. “De primeira a gente tinha aquelas Curimatázona, assim, do tamanho da gente. Já peguei foi muitos. Hoje em dia cê vê só essas bichinha desse tamanho”, abre um espaço de 10 centímetros entre as mãos grandes. “Faz até dó pegar”. O relato lembra a fala de Aleixo, que nunca foi pescador, mas também viu diminuir o peixe da Carinhanha: “Naquele tempo que tinha rio bastante, água bastante, eu tinha prazer de ir na beira do rio pra ver os peixes. Tinha aqueles peixão maravilhoso”, relembra. “Mês de agosto a gente via aquele surubimzão na beira do rio, assim. A gente caçava um pau pra triscar nele só pra ver aquele bichão viajando”, ele ri.

Aos 69 anos, o remeiro Fissu ainda pesca no São Francisco e na Carinhanha. Foto: Kika Antunes

É claro que não é só o peixe que vem diminuindo. Margeando a Carinhanha desde o alto, fica evidente a percepção das comunidades em relação ao rio: ele está secando. Na cabeceira, Maria de João de Alta percebe o contraste com outros tempos. “Esses anos atrás a Carinhanha não mostrava o fundo que nem tá hoje. Era bastante água, chovia muito, era muito cheia. Essa fonte nossa aqui era um porão. Era água mesmo, que a gente tinha até medo de encostar. Já hoje, minha filha, tá tão rasinha”, ela lamenta. A diminuição do volume de chuvas na região, como ela aponta, está diretamente ligada à redução da vazão do rio. Flávio localiza esse cenário em um horizonte de curto prazo: “Nesses últimos cinco, seis anos, nós observamos um grande déficit hídrico, em função das precipitações baixas”, ele explica. Sem água da chuva, acontece um processo de desidratação subterrânea: se a caixa d’água, que é o aquífero, não é abastecida, vai faltar água na torneira – o leito do rio.

A baixa precipitação pode estar relacionada à lida hegemônica com o Cerrado na região – destruição para o plantio de monocultura. “Hoje o povo faz tudo quanto é desmato na beira dela, aí, sai desmatando por um lado e por outro. É desmato, mesmo, que o povo faz pra plantar capim, pra criar gado”, acusa Aleixo, referindo-se à vizinha Chapada Gaúcha. “A vegetação era importante para a evapotranspiração [o processo de evaporação de água do solo e das plantas, fundamental para o ciclo da água]”, Claudio pontua. Além disso, “quando o solo fica descoberto, ele acaba sendo compactado, o que dificulta a capacidade de absorção da água”, explica Cláudio. É como diz Aleixo: “A madeira, ela é um tal que preserva a natureza da água”. Com a retirada da cobertura vegetal, o potencial de absorção e colaboração da região para gerar chuva é reduzido. “Explora-se muito mais do que a capacidade de absorção do aquífero e de abastecimento do rio, contribuindo para que o processo de chuvas e recargas possa se desequilibrar”, Claudio retoma. A equação é simples. Sem Cerrado, não tem chuva. Sem chuva, não tem rio. O desmatamento leva ainda ao assoreamento, que é o acúmulo de sedimentos no leito do rio, formando grandes bancos de areia que alteram o escoamento natural do curso d’água. Além do desequilíbrio ecológico, ele lembra que esse é o cenário em que explodem conflitos constantes, prejudicando ribeirinhos, geraizeiros, quilombolas e indígenas.

Rio abaixo, nos arredores de Salobro, não é diferente. Dina descreve a angústia de ver a água da Carinhanha baixar: “Esse rio aqui, a gente travessava ele ali no maior sofrimento de travessar, porque era muito fundo. Quando foi casar o meu primeiro neto, que é filho de Manuel, ali, foram travessar a madeira aqui no carro de boi. Carro de boi entrou de lá cantando e saiu de cá, e eu abri a boca no mundo chorando. Pra mim aquilo foi um fim de mundo. Eu ver o carro travessar o rio”, ela relembra. “E hoje ali travessa carro de mandioca, carro de gente, trator, tudo aí, ó. Rasinho, a água assim, ó”. Ali, o impacto vem das grandes fazendas vizinhas, produtoras de café e tabaco. Antes do rio chegar na comunidade, grandes pivôs tragam a água para alimentar as extensas faixas de monocultivo. Thiago conta que isso acontece tanto na Carinhanha, como em seus afluentes, o Riacho do Meio e o Itaguari. “Ouvi de um companheiro há um tempo atrás que a meta [de uma das fazendas] seria aumentar 40 pivôs por ano durante 10 anos, chegando ao total de 400 pivôs”, revela. “Até pra isso, eles não sabiam se a água desses três rios ia conseguir abastecer a quantidade de pivôs”.

A Carinhanha resiste ainda, já há alguns anos, à ameaça da construção de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) em seu leito. Salobro é um dos focos da resistência. “Graças a Deus e aos companheiros e às lutas da gente que até hoje ainda não tem”, Dina reconhece. “A gente vem lutando e andando pr’esse mundo afora e pelejando e pegando com tudo quanto é santo pra Deus ajudar que nunca vai ter uma barragem. Porque se o rio está desse jeito aí e faz uma barragem, o que é que nós vamos fazer?”, ela questiona. É comum que um mesmo rio seja alvo de diversos projetos de pequenas centrais hidrelétricas (como é o caso da Carinhanha), gerando um impacto cumulativo para a bacia. A avaliação do IBAMA, no entanto, contempla cada projeto individualmente. Além disso, em boa parte dos casos de instalação de PCHs, não há uma mensuração real da relação custo-benefício entre a efetiva geração de energia e o impacto socioambiental. Dada a força do setor energético no país, a balança sempre pende para o discurso desenvolvimentista.

A imagem árida da Carinhanha convertida em barragem ou devorada pelos pivôs faz retomar a descrição da passagem dos medeiro-vazes pelo misterioso Liso do Sussuarão. “Dá pra pensar que o Guimarães foi meio vidente de pensar nesse lugar como um deserto. Não tem deserto nenhum por ali. Mas talvez, com tanta monocultura, a região vá ficando mesmo com essa cara do Liso”, Gabriel matuta. Mas desdiz na sequência: “Se bem que foram duas travessias diferentes, né”. A ambiguidade, mais uma vez. Pensando na segunda empreitada do bando, concluída “de melhor em bom”, o geógrafo arrisca um novo palpite, mais esperançoso. “A forma da paisagem ali é simbólica. Talvez tenha mais a ver com esse jeito de lidar”, ele reflete. “Qual é nosso espírito para atravessar as coisas?”. Se depender de dona Dina, ainda corre muita água antes do rio secar. “Eu acho que ele [o Carinhanha] tá ensinando nós encorajar, ter coragem”, ela afirma.

Não é que não haja alternativas. A imposição de legislações mais equilibradas, por exemplo, é uma forma de manter a vida produtiva que se alimenta da Carinhanha, mas conter, ao mesmo tempo, a exploração desenfreada e desproporcional dos recursos hídricos. “É preciso entender a dimensão da bacia, que se fundamenta na viabilidade do aquífero. Não tratar apenas da torneira, mas da caixa d’água, pensando na recarga do aquífero”, argumenta Cláudio. “Tem que equilibrar a dimensão da produção, da exploração. Quanto posso produzir no Cerrado para que não traga um impacto de grandes dimensões para os mananciais?”. Nesse sentido, é fundamental que as outorgas de direito de uso da água sejam emitidas de forma percentual, considerando o equilíbrio da bacia como um todo. De qualquer forma, isso envolve “mexer nesse vespeiro que é a questão de apostar na monocultura como forma de equilibrar a balança do país”. Uma travessia espinhosa, mas necessária.

Imagem em destaque: Kika Antunes


* Carol Abreu é jornalista, educadora e percussionista da banda Djalma não entende de política.

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