Da terra às mãos

O Centro de Artesanato da Região de Januária é um casarão de estilo colonial, pertinho da beira do rio São Francisco, no centro histórico da cidade. Criado em 2004, tornou-se Ponto de Cultura em 2007 e promove, desde então, saberes e fazeres tradicionais e manifestações culturais e artísticas dos municípios da região.

Longe do glamour das galerias e da apropriação das lojas on-line, o espaço é um polo agregador em relação direta com os artistas e fazedores. Foi um articulador fundamental para a distribuição dos recursos da Lei Aldir Blanc em 2020 e aprovou, em um mutirão-laboratório, 77 projetos para as diversas manifestações — sendo 37 premiações para as áreas do artesanato.

Para esta edição da Manzuá, visitamos os quintais das casas de alguns dos artistas e artesãos que o Centro reúne: Vanuza de Souza Lima da Hora, na comunidade de Janelão; José Francisco Lopes Figueiredo, em Cônego Marinho; Liko de Oliveira, em Januária; Agenor Pereira Mendes e Nelton de Oliveira Mendes (Neto), pai e filho, na comunidade de Sangradouro Grande. Na lida com a madeira, o barro e a fibra vegetal, estabelecem diferentes relações com o trabalho, sendo importante fonte de renda para alguns, prazer ou forma de distração para outros.

Salta aos olhos a importância da relação com a “terra” em seus processos criativos para além da matéria-prima das peças. Vanuza molda no barro as memórias da infância na roça. Os seres talhados por Neto e Zé Francisco são um encontro da madeira bruta com os animais da região. Liko traz o misticismo do rio para suas peças com as carrancas e os santos protetores dos barqueiros. De uma forma ou de outra, o sentido desses trabalhos passa, fundamentalmente, por sua relação com o território.

Na definição conflituosa entre “arte” e “artesanato”, não caberia a nós atribuir uma etiqueta às peças à venda no Casarão. Alguns, como Liko, preferem a sonoridade da palavra “escultor” — que rima com o reconhecimento de “doutor” e “professor”. Outros, como Vanuza, optam pela simplicidade do termo “artesã”, com plena noção de sua potência criativa. Ao fim e ao cabo, quem sabe essa distinção não esteja menos no campo da diferença e mais na esteira da diferOnça, pra pegar emprestado um trocadilho de Viveiros de Castro?

Vanuza — barro

Vanuza. Inspiração nas memórias de quando era menina. Foto: Kika Antunes

Na porteira de entrada da casa de Vanuza, na comunidade do Janelão, uma placa anuncia aos desavisados “Não estamos recebendo visita. Favor não entrar”. Abaixo da frase, está pintada uma espingarda que atira em uma molécula de coronavírus. Conhecida na região, a artista costumava receber muita gente interessada em suas peças de cerâmica. Mas durante a pandemia da Covid-19, ela preferiu recolher a família e segurar a produção. “Se a gente tá com alguma preocupação, cê não vai querer mexer com barro”, desabafa. “A gente não tem nem vontade!”

O barro acompanha Vanuza desde menina, quando brincava com suas irmãs na beira do rio, na comunidade de Fabião. Anos depois, já casada, foi visitar sua irmã Ivani, que produz artesanato. “Ela falou assim: “ó, eu vou ensinar ocês fazer um pote, vem cá”, relembra. Mas Vanuza não quis repetir o modelo. Criou um pote de boca quadrada e fez sucesso entre a mulherada, que pediu para ela repetir a dose. Em vez do pote, ela fez uma família indígena. “Elas caíram na risada, do tanto que saiu bonito. O primeiro índio, elas: ‘é bonito demais, faz mais!’”, conta. “Aí eu fui fazendo”.

Não foi por acaso que Vanuza não se interessou pelos potes da irmã. O humor e a criatividade são marcas importantes do seu trabalho. “Eu gosto de fazer as esculturas que eu ponho, assim, a semelhança”, ela explica. “Nas esculturas, eu posso brincar. Eu posso pôr a carinha do homem engraçada, eu posso fazer ele rindo, ou com raiva. Eu posso fazer ele em movimento. E o pote, não. Cê faz o pote e ele fica lá.”

De sua casa no Janelão, Vanuza ouve o turrar das onças na serra. Foto: Kika Antunes

As memórias da infância na roça são um tema recorrente em seu trabalho: na estante da sala, tropeiros divertidos montam jegues com bruacas e cangalhas, como fazia seu avô. Em meio a esses sertanejos, ganha destaque também o forró: sanfoneiros e pandeiristas se misturam a muitos pares dançantes. Espalhadas pela casa, há ainda esculturas de onças majestosas e sucuris engolindo homens. “Meu pai contava história de onça quando eu era criança. E eu casei com um homem que mora num lugar que tem onça”, ela ri. “Às vezes a gente ouve os turrado delas pra lá, ó. Eu admiro, aí eu gosto de fazer elas”. Mesmo nas peças mais ousadas, o carisma de Vanuza desmonta qualquer maledicência. “Eu sou evangélica, aqui em casa frequenta muito crente. Outro dia alguém me perguntou se o pastor nunca me proibiu de fazer essas coisas”, conta. Mas nega qualquer censura pelas irmãs da igreja, que são só elogios ao seu trabalho. “E olha que às vezes eu faço umas esculturas assim, peladas. Mas se vir alguém aqui falar, a malícia tá em quem vê, não é?”

José Francisco — madeira

 Zé Francisco. Cada peça é unica. Foto: Kika Antunes

Um peixe com cara de coruja. Uma tartaruga de duas cabeças. Uma iguana, uma arraia, um jacaré com cau- da de tatu. Com suas mãos grandes, Zé Francisco talha formas fantásticas em pedaços de imburana crua. As criaturas surreais povoam a imaginação do artista. “É tudo daqui, da cachola minha”, ele explica, apontando para a ca- beça. “Tem hora que quando eu fecho meus olhos mesmo, eu vejo o quê que eu vou fazer. Não tem aquele estado que a gente tá dormindo e tá acordado?”.

Como ele faz questão de mostrar, cada peça é única: “eu faço cada uma diferente da outra, pra não sair como se fosse copiada”. Às vezes, as marcas deixadas por insetos ou pelo fluxo da água é que dão o tom do que será a criação do artista. “Se a madeira tá naquele formato, eu completo, né?” Com facão, serrote e formão, as formas vão se tornan- do mais nítidas, com cautela para não passar da conta. “Se a gente for gostar de tanto passar faca, acaba ficando com um palito de dente, né”.

Zé começou a mexer com madeira ainda na juventude. “Um dia eu sentei debaixo d’um pé de goiaba, achei uma raizinha de juá, aí comecei. Aí foi uma lagartinha, em cima da lagarta eu fiz uma perninha”, relembra. Nessa época, ele trabalhava como vigia na primeira usina que iluminou Cô- nego Marinho. “Eu fazia os feixinhos de pedacinho de im- burana, botava na bicicleta e trazia de lá pra cá”. No come- ço, esculpia madeira para distrair a cabeça. Aos poucos, foi aperfeiçoando a técnica e guardando as produções. “Des- ses tempos pra cá, as pessoas começaram a me procurar”.

Do ateliê de Zé Francisco saem seres fantásticos. Foto: Kika Antunes

Para fazer as peças, ele não precisa derrubar a madeira. É um processo de “reciclagem”, como ele explica: “aquela madeira antiga que cai, a gente vai e corta. A madeira já está morrendo, mas se conseguir tratar, ela torna a revi- ver. É igual à gente, mesmo”, brinca. O trabalho repetiti- vo já causou lesões graves nos braços do artista, mas ele não cede: “é a natureza disso, a gente tem que sentir a dor. Depois sara. Sarou, a gente torna a ir. Machucou, a gente sara de novo”.

Liko – madeira

As carrancas de Liko combinam estilos: clinas trabalhadas e presas salientes. Foto: Kika Antunes

A carranca é uma escultura humanoide, que mistura feições humanas a traços animais. Enquanto o São Francisco foi navegável, os vapores e barcaças que atravessavam o rio traziam carrancas em suas proas, para proteger os barqueiros contra naufrágios, tempestades e desgraças de todo tipo. “É um tipo de arte única no mundo”, comenta Lyco. “E quanto mais assustadora, melhor!” Hoje, a carranca saiu dos barcos para dentro de casa. Mas manteve o sentido da proteção, como explica o artista, que é também um pesquisador das artes que giram em torno do rio.

Cada ponto do Velho Chico tem seu estilo de carranca. “Nos lados de Petrolina e Juazeiro, na extrema parte baixa navegável, os modelos são mais vampiroicos”, Liko descreve. “Já em Santa Maria da Vitória, que é no meio do médio, elas assumem uma feição mais clássica”. A cidade é a terra do famoso Guarany, escultor de quem Liko é um discípulo indireto. Em Januária, seu mestre de ofício foi o finado Bufunfa — que não compartilhava tanto as técnicas, mas contava muitas histórias do rio. “Com 8, 10 anos, eu já cortava coisas em casa. Fazia barcos, era apaixonado com essas coisas”, relembra. “Eu seguia o apito dos vapores!”

As carrancas de Liko combinam estilos. “Eu adoro o clássico. A mistura de cara de cavalo com cara de gente. Trançar a clina, aquilo ali é a melhor parte”, relata. É dele, por exemplo, a carranca de 2,5m às margens da praia da cidade. Mas há mais ou menos 15 anos, Lyco deixou as carrancas de lado e enveredou para a arte sacra. “Como pesquisador, eu adoro esse lado. Simetria, proporção. Gosto muito disso, de trabalhar com escala”, ele comenta. Hoje, esculpe sobretudo santos por encomenda de padres da região: “São Francisco, eu adoro fazer. Por essa razão do rio, mas também pela história simples de vida dele. Santo Antônio, que é da mesma linhagem, eu também gosto”. Quando conversamos, Lyco estava terminando um São Gonçalo, padroeiro dos violeiros.

Detalhe da capa do São Gonçalo, encomenda de padres da região. Foto: Kika Antunes

Além das igrejas da região, Lyko tem obras no Memorial da América Latina, em São Paulo, e assina duas imagens de São Francisco que foram doadas ao Vaticano, levadas pelas senhoras da Sociedade Januarense. O próprio Papa Francisco enviou uma carta agradecendo ao artista, que ainda não chegou até suas mãos. Ele dá de ombros. “É uma figura boa, né?”, comenta sobre o pontífice. “São detalhes!”

Seu Nô e Neto Guacho madeira e fibra de cana brava

Neto talha tambaquis e piranhas nas gamelas de madeira. Foto: Kika Antunes

O quintal de seu Nô e dona Maria Francisca seria parecido com grande parte dos vizinhos, não fosse um barco enorme em construção, cercado por cachorros, galinhas, bezerros, bodes e patos. “Esse aqui é uma encomenda”, ele comenta. Aos 75 anos, seu Nô ainda trabalha em peças de madeira e balaios de cana brava — além de comandar, na viola, as folias da região.

Saber o tamanho exato do barco não seria, contudo, uma tarefa fácil. Como explica seu filho Nelton, conhecido na região como Neto Guacho, o pai não aderiu às unidades de medida mais modernas, como o metro. “O metro e o quilo demoraram a chegar na região, as pessoas tinham outras formas de medir”, relembra. Como antigamente, seu Nô trabalha com grandezas como palmos, quartas e as imprecisas “medidas”.

Neto, aprendeu com o pai a talhar a madeira. E sempre que pode, volta para a roça para trabalhar em suas peças. “Quando eu quero mexer no artesanato, eu entro dentro do carro e vou lá pra casa de meu pai. Lá, naquela sombra lá, é outra coisa”, ele relata. Além do silêncio, é na casa dos pais que ele pensa melhor. “Eles me dão inspiração, conforto de pai e mãe é outra coisa. E, cê vê, o ar lá é outro!”.

Como o pai, Neto faz mesas e bancos de madeira, além dos balaios. Mas suas peças mais procuradas são invenções próprias: grandes gamelas de tamboril e imburana em formatos que se assemelham aos peixes do rio. São imagens que Neto conhece com profundidade. “É porque eu sou pescador, a minha lida mais é com peixe”, explica. “Esse é inspirado num tambaqui, né. Ele é redondão. Esse aqui é mais numa piranha, entendeu?”

Há alguns anos, tambaquis e curimatás eram espécies que Neto pescava bastante. Mas depois de um problema nos rins, ele já não pode trabalhar com rede, e vem pescando peixes de anzol, como a piranha e o dourado. “A gente faz o que tá na mente. Desde pequeno a vida minha foi na pesca, né?”, relembra.

O trabalho de Neto foi retratado no primeiro curta metragem do Cine Barranco, Talhando o rio, dirigido por Gleydson Mota, que busca valorizar a vivência das comunidades ribeirinhas e dos pescadores artesanais do São Francisco. “O povo já tá me chamando de famoso na rua aí e eu nem sabia!”, brinca. “Mas pra mim é bom, né, tem o reconhecimento”. ∞


* Carol Abreu é jornalista, educadora popular e percussionista da banda Djalma não entende de política.

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