Eu não fui acostumado em cidade. Fui criado no mato. Fui criado assim, ó, na mata mesmo, na relação com os bicho. Tudo quanto é bicho a gente tinha aqui. E aquilo era tão bom… De noite, cê ia, escutava onça turrar, macaco, aquela bicharada cantar perto da gente. Só aquele som diferente. Ah, eu tenho saudade d’um turro d’uma onça. Tenho saudade… Coisa mais bonita! Tem gente que arrupia o cabelo todinho, assim. É muito forte um turrar de uma onça! E cê só vê de noite. Aqui tem muito ela, aqui tem muita onça, aqui. Mas o bicho é manso, não é bravo, não. Ela é brava assim, se ela tiver ateada, parida. Aí sim. Aí é perigoso. Mas fora daí, não. É um bicho lerdo, lerdo, lerdo, lerdo… É igual à cascavel. Bicho mais lerdo que tem é a cascavel. Cê passa per’dela, ela nem… A cascavel, ela tem uma mania: ela não joga pra perder. Por isso é que ela é lerda. Se ela ver que ela não vai pegar, ela não joga. É orgulhosa… É um bicho lerdo. Agora já tem outras que é valente, corre atrás de gente. Tem a coral, perigosa. A jararaca, quatro presa.. Tem aqui tudo aqui. As cobra que mais tem aqui são essas assim. Mas a que mais tem é cascavel. Parece que ela comeu as outras todas.
Era lindo se a gente viesse aqui de noite. Aí cê via bicho cantar, bicho turrar. Aondé que de noite fica esse quietão aqui? Não… Cê vê tanto cântico de bicho, tanto bicho andando. De noite eles saem. O turro da pintada é um, da preta, da suçuarana. O da pintada é mais tipo assim, d’um jumento turrando. Se tiver prato perto, os prato tine, assim, ó. De tão forte que é. Já vi muito aquilo turrar perto de mim, já vi muito… 1970. Que tinha onça demais e eu dormia na mata. A mineradora ficava na mata, tinha onça demais. Só que eu nunca animei atirar n’uma onça. Eu tenho dó. É bonito demais, lindo demais. Se você vê uma onça pintada, é a coisa mais linda. Eu não sei como é que atira n’uma onça. Porque a carne é ruim, não é boa. A carne não presta. Eles matavam pra vender o couro, o couro é caro. E matava também porque elas matavam o gado, dava um prejuízo no gado. E matava gente. Onça matou muita gente aqui nessa região, comeu muita gente.
Eu ia ser comido de onça. Onça só não me comeu porque Deus não deixou. Isso foi mais ou menos em 75, nós trabalhava em muitas mineração aqui. E nós foi fazer uma pesquisa n’uma mineração. Era mina de prata. Não tinha casa, não tinha nada, era só uma pesquisa. Lá era uma mata tipo mata atlântica, inda é hoje. É uma mata virgem, uma coisa fora de série, a mata. Aí nós trabalhamos a semana e ele falou: “Getúlio, cê vai ficar aqui. E nós só vem segunda feira, vamo pra Januária”. Era a uns 40 quilômetros de Januária. Só ficou eu e um rapaizim, todos dois rapazim novo. Um silêncio, coisa mais esquisita. Essa ocasião tinha onça de todo tipo. Aí nós fizemo uma caminha debaixo d’uma árvore. No tempo, mesmo. E deitamos ali. Eu falei: “ó, nós vamos panhá lenha, muita lenha, pra acender o fogo. Porque se nós não acender o fogo, onça mata nós aqui”. Porque se tiver o fogo, ela não vem também, não. E aí nós panhamo lenha, panhamo lenha, acendemo o fogo de noite. E nós tamo sentado naquela caminha, conversando. Falei: “Ó, nós não pode dormir”. Se dormir, meu deus, um silêncio, uma mata atlântica. Eu tava com um revólver, um 38, eu peguei e engatilhei o revólver. Dormi com o revólver assim. E ele botou o facão na cabeceira da cama, falou: “se a onça vim, nós tamo armado”. E nós conversando e pondo lenha no fogo. Quando foi lá pra uma hora da madrugada, nós dormimo. Sabe o que aconteceu? A onça veio, desceu a serra. Ela veio, viu nós conversando, viu o fogo, foi chegando, que ela faz é assim. Ela ficou de pertinho de nós e parou, ficou parada muito tempo. E nós conversando. Aí o fogo foi apagando. Foi apagando, lenha seca, foi apagando, apagando, apagando. Aí quando o fogo apagou, ela veio. E ela ia pegar eu, porque eu falei, “vou ficar do lado da serra, tô com o revólver, cê fica do lado da mata”. Eu era rapaz novinho, desse tamaninho assim, ela ia me carregar e me comia dentro da caverna. Aí ela foi vindo, vindo, quando o fogo apagou, que nós dormiu mesmo, apagou tudo… Primeira vez que eu tive um contato com anjo. Um milagre. Milagre. Quando eu tô dormindo, veio um homem, uma voz bem grossa, uma mão grande e bateu a mão nesse ombro meu aqui. E me chamou três vez: “ô Getúlio! Getúlio! Acorda, Getúlio!” E me balançou. “Acorda, Getúlio, acorda!” E eu acordei. Quando eu acordei naquele escuro, aquele escuuuro, aquele escuuuuro. Se ocê fechar o olho aqui, fecha o olho! Era mais do que isso aí. Nós tava dentro de uma mata virgem, de noite, sem lua, sem nada. Imagina que escuro! Aí eu lembrei: “vixe, a onça tá aqui. Tenho certeza”. Quando vi aquilo, eu levei o revólver pra cima e dei o tiro. Quando eu apertei o dedo, esse revólver fez um baruuulho… Duas da madrugada, no pé d’uma serra. Dá um pipoco tão grande! Olha, mas essa onça levou um espanto tão grande. Ela não tava esperando aquilo. Naquele pipoco, ela deu um pulo pra trás. E ela saiu correndo e batendo nas árvores. Eu falei: “acorda, menino! Acorda, acorda, a onça”. Aí ela subiu a serra e foi batendo naquelas lajezinha. Que ela não bate ni laje. Ela caminha na folha seca de uma tal maneira, que você não sente. Mas ela saiu tão apavorada, que ela saiu batendo nas laje, nós escutando. Agora você vê. Só Jesus sabe do nome da gente. Os anjos todo não sabe. Mas ele sabe. Por quê que ele chamou meu nome? A onça não escutou, nem o rapaz escutou. Mas ele falou meu nome. Então primeira vez que eu tive contato com anjo, que eu ia ser comido de onça. Coisa esquisita, né?
Depois da pandemia pra cá, esse mundo não vai ser mais como era mais, não. Deixou muita coisa na cabeça da gente, no coração. Muita saudade, lágrima, choro, sorriso… A gente ficou assim, parece que chegou na lua e vamo começar a viver de novo. O que a gente viu, que a televisão mostrou e tá mostrando. Uma incerteza tão grande que deu no mundo, mexeu com as nações… Acho que a coisa cercou o mundo, mudou os nossos pensamentos, as nossas ideias. Mudou os nossos costumes de comer, de beber, de relacionar. A coisa boa é a gente dar um abraço! Porque um abraço, gente, um abraço é bom demais. Um abraço fala muito com a gente, um apertar de mão… Então a gente mudou totalmente o viver da gente. Parece que a gente ficou como estranho das pessoas. Essa coisa pegou a gente de uma tal maneira. A gente espera que logo, logo, vai estar todo mundo vacinado, fazendo aquilo que a gente gosta. A gente viu coisa que nunca viu. Aonde eu já vi abrir sepultura de trator? Porque de enxada não deu mais conta. Só que nessas alturas a gente fica feliz d’uma coisa. Tem uma coisa que enche o coração da gente de alegria. É quando a gente lembra de falar assim: eu tô vivo! ∞
Getúlio Bispo da Rocha é condutor ambiental no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu.