Quando o celular acusou sinal, a notificação do WhatsApp mostrou uma resposta inconclusiva: “Se Deus quiser…”. Há dias, tentávamos confirmar a visita à casa de Santino Lopes, na comunidade de Água Doce, zona rural de Bonito de Minas. Mas suas mensagens eram bastante enigmáticas, por assim dizer. Agricultor familiar, Santino é um mobilizador do extrativismo de frutos do Cerrado. E é também uma liderança espiritual da região, o que explica o tom de mistério. Contando com a boa vontade divina e a receptividade do dono da casa, pegamos o rumo da visita — e deu tudo certo.
Seu Santino articula as comunidades veredeiras nos arredores do rio Pandeiros. Além do Conselho do Mosaico Sertão Veredas — Peruaçu, integra colegiados municipais e estaduais e foi eleito recentemente como representante no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais. “Hoje eu tô em vários Conselhos mesmo, só pra mim chegar e colocar minha posição, meu entendimento”, ele diz. Mas seu trabalho com a educação ambiental, como ele nomeia, começou há muito tempo. “No caso nosso, nós temos que trabalhar muito forte isso aqui, pela necessidade das pessoas entenderem a riqueza da água”, completa.
Nos fundos da casa de Santino, nasce a vereda da Água Doce. Chegando pertinho, dá pra ouvir um clog-clog na água, em pulso contínuo, como se fosse um coração batendo. É o barulho do sistema de captação de água que ele instalou há quase 20 anos e que abastece sua casa, as pequenas plantações da propriedade e o viveiro de mudas de espécies do Cerrado. “É uma matemática”, ele explica, mostrando o sistema de peso e pressão. Santino instalou o aparelhinho em diversas casas nas comunidades vizinhas, como forma de garantir o acesso à água e manter a vereda limpa e a comunidade alerta. Hoje, algumas famílias que têm luz elétrica optam por outros métodos, mas ele permanece firme na matemática do cuidado. “Tem as maneiras hoje mais simplificadas de jogar água, né? Mas aí você tem que trabalhar com aquela que menos degride, que menos destrói”.
Caminhando vereda adentro, a riqueza de cores e sons se multiplica. “Esse é um pássaro grande, do bicão. Ele vem todo ano chocar, ele reproduz aí”. Santino vai descrevendo os bichos e plantas que aparecem em nosso caminho. “Essa planta aí a gente chama ela alface d’água”, apontando para uma vegetação que cresce dentro do espelho da vereda. “Você já ouviu falar numa planta chapéu de couro? Aqui, ó. Ela é medicinal, farmacêutica mesmo. E o jaborandi? É esse aqui”, tira uma folhinha. “Minha esposa quando vai fazer o sabão, ela coloca. Olha o cheiro procê ver”. Santino nasceu em Água Doce, mas, como muitos sertanejos, foi ganhar a vida em São Paulo. Por 11 anos, exerceu a profissão de técnico contábil na capital paulista, a 1.200 quilômetros dali. Desde 2001, voltou para o Gerais com a família. “Abandonei tudo e vim criar meus filhos aqui. Na simplicidade, sabe? Queria mostrar uma outra versão pra eles”.
Os veredeiros estão entre as 28 populações definidas pela Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. Ao lado de povos indígenas, quilombolas, raizeiros, povos de terreiro, caboclos, pescadores artesanais, quebradeiras de coco babaçu e tantas outras, são comunidades que possuem modos de vida tradicionais e conquistaram direitos específicos na legislação brasileira. “Cada um desses povos carrega consigo um jeito de ser e de estar”, como explica a professora Sónia Carvalho, pesquisadora do Departamento de Cartografia da UFMG.
O manejo que essas populações fazem dos bens naturais está normalmente associado à conservação de seus territórios. Pode reparar: onde tem comunidades tradicionais, tem natureza em pé. Como Sónia relata, esses grupos costumam ter suas próprias normas e ciclos, que fazem com que não haja uma exploração desregrada do ambiente. E esse conjunto de conhecimentos é indissociável dos ecossistemas onde vivem. “É o que a gente chama de sistema socioecológico: a sociedade e a cultura a falar com o meio ambiente e suas restrições, aprendendo a tirar partido dessas limitações de uma forma sábia”, ela desenvolve.
O reconhecimento de povos e comunidades tradicionais passa pela autodeclaração. Mas Santino explica que, mesmo que as comunidades de sua região não se reconheçam necessariamente dessa forma, isso não faz delas menos veredeiras. “Ele depende da vereda para tudo. Para produzir, tomar banho, tudo. Então ele nasceu e criou gerações na vereda. Você não precisa inovar, mentir ou fazer nada, porque automaticamente aquela família é veredeira”. Tanto é assim que não é possível separar a vereda da comunidade. “O segredo da vereda é assim”, ele revela: “se você chegar naquela comunidade, o nome dela é o nome da vereda. Aqui é Água Doce. Se você for ali na outra, é Panelas, São Domingos, Larga, Ribeirão”. Comunidade e vereda se confundem nesse sistema de relações e conhecimentos que associa fortemente as pessoas aos seus territórios ancestrais.
Em “O recado do morro”, Guimarães Rosa descreve as veredas como o “coração e corôo de tudo, o real daquela terra” dos Gerais: “vivendo em verde com o muito espelho de suas águas, para os passarinhos, mil — e o buritizal, realegre sempre em festa, o belo-belo dos buritis em tanto, a contra-sol”. A novela narra a aventura de Pedro Orósio, que guia uma comitiva de Cordisburgo até a região do Gerais. Pê-Boi, como é chamado, era “catrumano, nato num povoadim de vereda, no sertão dos campos-gerais. Homem de brejo de buritizal entre chapadas arenosas, terra de rei-trovão e gado bravo”. Saudoso de sua terra, ao lado do amigo Ivo, conduz o doutor seo Alquiste, o frade Frei Sinfrão e o fazendeiro Jujuca do Açude sertão adentro.
As menções à exuberância das veredas percorrem diversas das obras de Rosa. Não por acaso, há dois pontos entre “Grande Sertão” e “Veredas” no título de seu romance mais famoso. O geógrafo Gabriel Oliveira associa esse jogo de palavras ao dualismo próprio da narrativa. “No discurso do Riobaldo, o Sertão é essa região confusa, labiríntica, tortuosa. Há uma interpretação que atribui às veredas, em contraponto, um papel de respiro em meio à aridez”. É bastante comum, inclusive, a descrição das veredas como uma espécie de oásis. Walter Viana, biólogo e técnico do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), observa que a parte alta do Cerrado é composta por areia quartzosa, que não segura umidade. Por quatro meses, há chuva. “No resto do tempo, o único local que tem água são as veredas”, ele comenta. “É a única área que fica verdinha toda época do ano”.
Assim como o Cerradão, a Mata Seca e o Campo Rupestre, veredas são formações típicas do Cerrado. É como se fossem subsistemas, com características próprias, que vão compondo o bioma em toda a sua extensão. Como Walter explica, a vereda é uma área úmida, resultante de processo de exsudação do nível freático. Embora o nome seja sisudo, a exsudação é relativamente simples de entender: as veredas estão localizadas abaixo do nível freático, que chamamos popularmente de lençol d’água ou lençol freático. Então, por força da gravidade, a água mina dali, ela “exsuda”, criando uma área encharcada e bastante fértil, cercada de gramíneas e buritis.
A vida no Cerrado está intimamente relacionada a essas áreas úmidas, que além de constituírem o berço das águas da região, são espaços importantíssimos de refúgio, alimentação e reprodução para animais aquáticos e terrestres. E isso não é trivial. De acordo com o relatório do CEPF — Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (do inglês Critical Ecosystem Partnership Fund), o Cerrado é uma das regiões de savana tropical mais ricas do mundo. São mais de 12 mil espécies de plantas nativas catalogadas, além de centenas de espécies de mamíferos, aves, peixes, répteis e anfíbios. As cabeceiras das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul (Amazonas/Tocantins, São Francisco e Prata) estão nesse bioma. Para se ter uma ideia, 94% da água superficial da Bacia do rio São Francisco é gerada no Cerrado.
Por tudo isso, comunidades, pesquisadores e órgãos ambientais no território têm alertado para um fenômeno extremamente preocupante: o secamento das águas superficiais, em geral, e das veredas, em particular. Desde quando era técnico do Instituto Estadual de Florestas, Walter monitora as veredas da região do Peruaçu, ali pertinho de Seu Santino. E ele é categórico quanto ao tamanho do problema: “Nós estamos a caminho de um desastre ambiental aqui no Norte de Minas, que já está em curso”. Ele observa que, na região de Montes Claros, já secaram praticamente todos os rios. “Onde ainda tem rios perenes hoje são as veredas aqui da margem esquerda do São Francisco. Mas também já começou. O Peruaçu já começou a secar e o nível continua baixando”, ele alerta.
A devastação do Cerrado é considerada um fator fundamental para esse cenário. Pelo menos metade da cobertura natural do bioma já foi destruída. A bióloga Aryanne Amaral, técnica do CEPF Cerrado, explica que o desmatamento é ocasionado sobretudo pelo avanço da pecuária, da agricultura intensiva (de soja, milho e algodão) e da mineração. No Norte de Minas, ela aponta que os cultivos de monocultura e a extração de carvão vegetal têm sido especialmente nocivos. A região sofre até hoje as consequências de políticas de incentivo do governo federal na década de 70, que promoveram o avanço de grandes empreendimentos de agropecuária e da silvicultura (plantio de eucalipto para a produção de carvão vegetal).
Walter relaciona o secamento ao desequilíbrio entre a recarga e a descarga na bacia do Peruaçu — segundo ele, estão retirando mais água do que está entrando com as chuvas. Ele explica: “Se a vereda parou de exsudar, é porque o nível freático está ficando mais baixo do que a calha”. Em sua pesquisa de doutorado, ele fez medições do lençol d’água durante quatro anos e a estimativa é que o nível freático tenha rebaixado cerca de meio metro por ano. Para ele, é provável que esse rebaixamento esteja relacionado à alta vazão dos poços tubulares que abastecem, sobretudo, as propriedades rurais da região. Quando ampliamos a lupa para todo o Norte de Minas, o impacto é ainda mais evidente: “tem um poço aqui no Jaíba que puxa 500 mil litros de água por hora. Isso é a vazão de cinco veredas”, alerta.
Para Seu Santino, há ainda uma explicação espiritual. “A mãe natureza, mesmo, ela está em guerra com os seres humanos”, sentencia. De acordo com ele, nós estamos destruindo nossa própria existência e a Terra, como organismo vivo, está reagindo. “Se você ver como estão sendo produzidos os alimentos para a grande massa: o agrotóxico, a destruição, a contaminação do solo. Os seres humanos estão empenhados muito no capitalismo e no materialismo, o negócio está saindo fora do controle”, avalia.
Quaisquer que sejam as causas, o horizonte é assustador. Se secam as veredas, que concentram a água que alimenta o Cerrado, todo o resto acaba. Walter comenta que a reposição natural do bioma ainda é alta. O processo passa pela polinização, coleta de sementes, quebra da dormência e plantio de mudas — todas essas etapas são realizadas de forma extremamente eficiente pelos bichos. Mas sem água, nada disso será possível. “Os animais não sabem furar poço. Quando acabar toda a água superficial, eles vão migrar. Se eles migram, o processo de desertificação, que já começou, vai ficar ainda mais grave”, afirma.
Gabriel retorna a Guimarães Rosa para imaginar esse futuro terrível. “Se acabam as veredas, o sertão roseano vira um deserto gigantesco, sem o respiro das veredas ou o simbolismo da dualidade”, ele projeta. “A vida será totalmente engolida por esse grande deserto, gerado pelos anseios da modernização no Cerrado”.
Há, no entanto, uma série de iniciativas que buscam reverter esse cenário catastrófico — ou adiar o fim do mundo, como nos sugere Ailton Krenak. Hoje, o Cerrado é considerado internacionalmente como um hotspot de biodiversidade: região que possui grande número de espécies endêmicas, mas está gravemente ameaçada por processos de degradação ambiental. Há 35 dessas regiões no planeta, como as ilhas do Caribe, as Florestas Valdivias no Chile, a região do Chifre da África, a bacia do Mediterrâneo e as montanhas da Ásia Central. Desde 2016, o Cerrado foi selecionado pelo CEPF como um dos 10 hotspots prioritários para investimento no mundo inteiro.
Diversas organizações locais atuam junto do CEPF para proteger o bioma, com medidas para preservação da biodiversidade e monitoramento dos recursos hídricos. Na região do Mosaico Sertão Veredas — Peruaçu, uma iniciativa recente é o projeto para a criação e expansão de áreas protegidas, realizado em parceria com a Amda — Associação Mineira de Defesa do Ambiente. A proposta é identificar áreas importantes para a conservação dos ecossistemas naturais do Cerrado, chamando para o debate comunidades tradicionais e proprietários rurais.
Além da ampliação de alguns limites de unidades de conservação, o projeto identificou potencial para a criação de quatro áreas de proteção integral: Monumentos Naturais (MONAs) no Morro do Brejo do Amparo, no Morro do Itapiraçaba, na Cachoeira do Gavião e na Serra das Flexeiras, regiões de grande beleza cênica e onde não há ocupação humana. Essa delimitação muitas vezes esbarra na boa vontade do poder público, como relata Luiz Gustavo Vieira da Silva, geógrafo e engenheiro agrimensor da Amda: “estamos vivendo uma grande dificuldade para emplacar essas UCs nos níveis estadual e federal de governo, que não demonstram muita sensibilidade para a questão ambiental”, observa. “Mas as prefeituras de Bonito de Minas e Januária, por exemplo, têm mostrado interesse, desde que não haja conflito com as comunidades”, relata.
A preocupação das prefeituras tem fundamento. O histórico de criação de unidades de conservação no Brasil é marcado por conflitos diversos, relacionados à desapropriação de comunidades tradicionais. Aryanne Amaral, do CPEF, comenta que a própria ideia de conservação ambiental se atualizou com o passar dos anos. “Hoje não tem como tratar de conservação se não envolver pessoas e territórios”, afirma. Mas fazer com que a gestão de áreas protegidas seja socialmente efetiva ainda é um desafio, como afirma a professora Sónia Carvalho, que também integra a equipe do projeto. Ela destaca que o objetivo ali não é criar áreas protegidas para conservar a natureza intocável. “Ao contrário, é fazer com que essa natureza intocável, que tem sido conservada e mantida pelo uso, possa trazer benefícios para as comunidades”, explica.
Nesse sentido, o projeto identifica também estratégias como as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e os Territórios e Áreas Conservados por Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais e Locais. Os chamados TICCAs são uma modalidade recente de áreas protegidas, que busca criar formas de gestão territorial que não estão previstas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação — SNUC. Cabe às próprias comunidades se autodeclarar dessa forma, definindo o território que usam para sua subsistência como uma área importante do ponto de vista da preservação. O quilombo Kalunga, no norte de Goiás, é o primeiro território reconhecido como TICCA no Brasil.
Na visão do grupo, a delimitação de TICCAs pode melhorar as condições de gestão comunitária na região, identificando aptidões e fortalecendo as cadeias produtivas locais, como o extrativismo de frutos do Cerrado, por exemplo, que ainda não tem seu valor reconhecido como deveria. “O extrativismo acaba sendo um parente pobre da agricultura intensiva, se compararmos sua rentabilidade por hectare”, Sónia comenta. “Mas é importante acrescentar nessa conta a conservação ambiental que a gestão tradicional permite. Comunidades extrativistas não exploram a água e o solo à exaustão. Sua produção acompanha as estações do ano e respeita a produtividade natural do ecossistema”, defende.
Entre as cooperativas agroextrativistas do Norte de Minas, as realidades ainda são muito diversas. Enquanto algumas associações já trabalham com cadeias bem organizadas e mercados estabelecidos, outras ainda pelejam com vendas esparsas e dificuldades na organização. A unidade de beneficiamento de frutos de Água Doce é a prova desse cenário. Santino conta que estão operando ainda de forma artesanal, para convencer a comunidade do potencial do extrativismo. Mas ainda falta muito para que os frutos do Cerrado sejam mais atrativos para as famílias do que atividades extremamente danosas e muitas vezes ilegais, como o carvoejamento.
Para alavancar essas iniciativas, Sónia acredita que é possível criar estruturas de governança para que empresas, comunidades, agricultores e poder público discutam sobre os futuros que se deseja para o território. “É uma negociação constante. Mas precisamos nos engajar nesse processo”, reivindica. “O que nós não podemos deixar é que comunidades tradicionais sejam marginalizadas por uma sociedade que não as valoriza. E que, ao contrário, valoriza modos de vida que estão atrelados à destruição do meio ambiente, que depois toda a sociedade vai ter que pagar para recuperar”.
De volta a “O recado do morro”, Gabriel comenta que a novela pode ser uma pista importante para os tempos que se avizinham. Na história, a jornada da comitiva é atravessada por uma mensagem inusitada, um recado do Morro da Garça que traz uma questão de vida ou morte. “Quem tem a palavra mais importante, o significado mais importante do que é transmitido no enredo, é o morro”, ele elabora. “E é um recado dado pela natureza, uma coisa intuitiva”. Quem consegue escutar esse recado são alguns sertanejos, cuja compreensão vai muito além da lógica que nos separa da Terra. “Talvez seja preciso entender os recados da natureza de forma não instrumental, para além da racionalidade que nossa sociedade tem reproduzido”, ele arremata.
Carece de ouvirmos o recado das águas, do pulso da vereda de Água Doce à barra da Carinhanha. Como no recado de Guimarães Rosa, há urgência nesse aprendizado e talvez seja também uma questão de vida ou morte. Uma certeza nós já temos: ele só será efetivo ao lado das populações que ainda guardam o Cerrado de pé — comunidades que são, elas mesmas, rio, barranco, vazante e vereda.
Imagem em destaque: Kika Antunes
*Carol Abreu é jornalista, educadora popular e percussionista da banda Djalma Não Entende de Política