Nascentes Geraizeiras

O Gerais é um lugar que se dá em relação com a força do lugar. Um campo aberto, onde gado é criado na solta. Aprendi que Gerais é tudo que é horizonte, onde os olhos não conseguem enxergar o fim. O Gerais é diferente da terra de cultura, sendo essa próxima de onde há água, terra de cultivo e onde vivem espécies importantes para a manutenção do povo sertanejo. 

É no Gerais que encontramos a maioria dos pontos de coleta de frutos, onde ouvimos histórias de emboscadas e campeio do gado na literatura. Gerais é identidade coletiva, refere-se ao modo de vida, sendo o Gerais pertencente a quem vive nele. 

Com essa visão, nos vemos dentro do Cerrado, como parte única em sua formação e modo de vida. Esse bioma é considerado berço das nascentes e das águas subterrâneas. Abundante em fauna, flora e tipos de solo, traz a cor de seus povos como registro de sua natureza. Positivá-lo faz parte da missão de vida de quem vive aqui, mas também do estrangeiro que passa e se apaixona pela verdade desse território.

Esses foram os aprendizados-ensinamentos que vivi sendo filha e cria do Norte de Minas. E que com muito cuidado, sensibilidade e riqueza de informações, Mônica Nogueira trouxe em sua tese de doutoramento Gerais a dentro e a fora: identidade e territorialidade entre geraizeiros do Norte de Minas Gerais**, que se tornou livro.

A ideia do Cerrado e do Gerais enquanto espaços “vazios” e “inóspitos”, fruto do projeto de negativação do bioma, é desconstruída em sua tese pela força da palavra dos geraizeiros e geraizeiras. Longe de trazer a força do Cerrado pelo contraste Amazônia/Cerrado, bonito/feio, rico/pobre, ela segue com olhar interdisciplinar o movimento de afirmação identitária. E nos mostra como se deu a ocupação desse espaço vivo desde a pré-história e como ele é ressignificado por quem mora, vive e protege o território, numa relação profunda com a natureza. 

Trouxe esse destaque como forma de agradecimento. Depois de vários anos apoiando as organizações do Cerrado, em especial na Rede Cerrado, hoje Mônica Nogueira é professora da Universidade de Brasília e coordena o mestrado em desenvolvimento e sustentabilidade junto a povos e comunidades tradicionais. É uma proposta pioneira para formação de povos e comunidades tradicionais e contextos comunitários. Eu tive a honra de compor a banca de seleção representando a Rede Cerrado.

Na seleção de 2019, eis que recebo o primeiro projeto escrito por uma mulher geraizeira, Maria Lúcia Agostinho***, mãe, professora, pequena produtora. Naquele momento, lia pelos olhos dela a comunidade de Água Boa II e toda a história de resistência e mobilização pelas nascentes do Cerrado.

Professora na comunidade de Água Boa II, Maria Lúcia foi uma das lideranças na criação da RDS Nascentes Geraizeiras. Foto: Breno Lima

Lembrei-me que nosso primeiro encontro não se dava ali e sim em junho de 2014 durante a greve de fome e sede feita por 30 geraizeiras e geraizeiros na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Naquele momento, fazia a minha primeira assessoria pela Rede Cerrado e pude estar mais perto de Maria Lúcia e da sua companheira de articulação Neusita Ferreira Agostinho, geraizeira, coordenadora da Pastoral da Família e também moradora da Comunidade de Água Boa II. As sertanejas e sertanejos em greve traziam a demanda pela criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável no território, que abarcava 19 comunidades e três municípios.

A Reserva de Desenvolvimento Sustentável, chamada de RDS, é uma categoria de Unidade de Conservação estabelecida pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), o qual rege a gestão dos espaços naturais especialmente protegidos no Brasil. No SNUC há dois tipos de UCs: as de proteção integral, que proíbem a presença humana, como Parques Nacionais e Estações Ecológicas; e as de uso sustentável, como as RDS, as Reservas Extrativistas (Resex) e as Áreas de Proteção Ambiental (APAs). 

Tanto a Resex quanto a RDS são categorias criadas pela demanda de povos e comunidades tradicionais em busca de modelos diferenciados de desenvolvimento. Uma das diferenças básicas entre as duas é que, na RDS, o território e sua gestão são compartilhados entre seus moradores. Sendo seu domínio público, só haverá desapropriação se for necessário. Para os povos Geraizeiros, a criação de uma RDS é um marco importante, pois garante a proteção de seus territórios e nascentes ao mesmo tempo em que assegura a manutenção de seus modos de vida, na lida com o gado e outros animais de pequeno porte.

Retomada das nascentes

A RDS Nascentes Geraizeiras, criada em 13 de outubro de 2014, tem uma área de mais de 38 mil hectares, abrangendo os municípios de Vargem Grande do Rio Pardo, Montezuma e Rio Pardo de Minas, além das comunidades de: Vargem de Salinas, Água Boa II, Riacho de Areia, Água Fria, Buracos, Vale do Guará, Sítio Novo, Catanduva, Inveja, José Pretinho, José Fernandes, Mandacaru, Roça do Mato, Cercado, Brejo, São Modesto, São Francisco, Samambaia e Cabaças.

Os moradores dessas comunidades mantêm relações de parentesco e, por 12 anos, os laços de companheirismo em defesa de suas nascentes foram mobilizados e articulados pelas mulheres. Num território em que a pilhagem do Cerrado se tornou a prática para o avanço da fronteira do agronegócio, a fé e as águas movimentaram esses corpos. Maria Lúcia conta que a partir da década de 60 as “firmas” e as construções das estradas de ferro impactaram bruscamente a região com a promessa de “progresso”. Essa ideia foi embasada pelo projeto de “colonização dos espaços vazios” que ainda povoa o imaginário de muitos brasileiros e brasileiras quando pensam no Sertão.

Ela é a sétima de uma família de três mulheres e quatro homens. Seu pai, Serafim Oliveira Saudoso, dizia que “viver na terra dos outros é escravidão, e a sabedoria, o maior tesouro”. Hoje estrela no céu, Seu Serafim viveu uma trajetória de coragem e força. Como muitos moradores da região, foi um dos trabalhadores braçais nas docas de algodão e mais tarde na construção da ferrovia. Como Maria Lúcia relata, “existia a necessidade real de construção das estradas de ferro e o serviço braçal era a procura naquele momento”. O sonho nessa época era conseguir uma quantia de dinheiro para ter seu próprio pedaço de terra. 

Como Seu Serafim, muitos homens, até os dias de hoje, saem para trabalhar em fazendas com sonhos de melhorar de vida. Essa repetição de padrões antigos vem custando caro à população geraizeira, com a chegada de doenças e o crescimento do êxodo escolar e dos deslocamentos compulsórios para as periferias das cidades grandes. Em se tratar dos estudos, sempre foi algo que era de se valorizar: “sabendo ler e escrever, tá bom”, dizia o Seu Serafim. Já a mãe, Leonora de Oliveira, não tinha leitura, mas sempre incentivou os filhos a estudar para ter uma melhora na vida. A decisão de trazer um professor para casa foi o que ajudou Maria Lúcia a estudar até a 3ª série, quando precisou parar. Ela só retornou aos estudos aos 15 anos de idade, quando finalizou a quarta série. 

O imaginário das “firmas” e das “fazendas” ocupava a cabeça dos mais jovens. Mesmo com muita fartura, onde se plantava feijão, milho e horta, se fazia farinha e até um “gadinho de leite” para os biscoitos, circulava a imagem da “firma” como o lugar que tinha o dinheiro. O desejo de Maria Lúcia não era o biscoito, mas o “pão da padaria, as coisas que tinham fora da nossa comunidade”. A contragosto de seu pai, decidiu seguir.

Seu trabalho era praticamente “coviar”, a “empreitada de abrir cova para plantar”. Nessas idas e vindas da fazenda, pôde ver com seus olhos todas aquelas árvores sendo tombadas, abrindo o Cerrado. “Era pequi, mangaba, ipê, árvores antigas, uma tristeza”. O pagamento era por hora trabalhada e como ela e seus irmãos eram menores de idade, não havia relação contratual. Os dias trabalhados na firma não chegavam a quatro por semana, porque também era preciso ajudar o pai na roça. 

Ela não ficou muito tempo, pois recebeu um convite para ser professora leiga em Água Boa II. Começou a lecionar aos 17 anos e logo se tornou liderança comunitária. Nessa época, chegou ao limite de ter 80 alunos. Conciliava a feitura da merenda com a gestão escolar. As estradas começavam a ficar melhores e as idas à cidade para cobrar das autoridades também se intensificaram. Em sistema de mutirão, a comunidade construiu a igreja, onde a escola passou a funcionar. Isso fortaleceu o local, que permanece um ponto de encontros comunitários até os tempos atuais. 

No final da década de 80, Maria Lúcia seguiu para sua última viagem rumo aos postos de trabalho em firma. Dessa vez, foi ao encontro de seu esposo, na região do Rio Claro. Com seus quatro filhos, sendo um no ventre, começa a trabalhar numa reflorestadora antiga na região de Arinos, bem próxima ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas.

Em 1992, retornou para sua região e não mais saiu. Ela conta que, no dia em que saiu de Arinos, foram dois caminhões: um com os trabalhadores e as trabalhadoras com filhos e o outro com as mudanças da casa. Ao chegar em Buracos, comunidade de seus pais, trabalhou por um tempo na queima de carvão e sentiu que era tempo de parar. Foi quando chegou o chamado de seu coração para olhar para o secamento das nascentes e a situação da comunidade. 

Das 21 nascentes registradas no local, restavam apenas seis correndo água. Com o apoio da rede de solidariedade e formação de base do Centro de Agricultura Alternativa (CAA), do Sindicato e Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da região, da Embrapa e de pesquisadores, o conhecimento foi o maior aliado. A comunidade começou a entender que se aquela realidade não mudasse, a vida estaria em risco. A fé e a intuição guiaram as mulheres de Água Boa II a denunciar o que ocorria em sua comunidade. A ponto da parada das máquinas que derrubavam o Cerrado ser feita pelos corpos das mulheres geraizeiras. E Neusita foi uma delas. 

Fazer junto

Neusita – geraizeira nascida e criada em Água Boa II, licenciada em Educação do Campo na área de Matemática – conta que desde menina acompanhava os pais na lida com o Cerrado. Viam na extração do óleo do pequi e na cata da mangaba uma fonte de renda e apoio familiar. Isso fez com que, já moça, trouxesse para a formação de sua família a defesa do Cerrado. A revolta pela expropriação das terras e das nascentes não foi maior que o amor pelo lugar. 

É nesse contexto de resistência amorosa que a Cooperativa de Agricultores Familiares Agroextrativistas de Água Boa II é criada. Com o objetivo de valorizar os recursos locais, incentivar a preservação do território e gerar renda para as famílias, 15 mulheres se reuniram em 2009 para sua formalização. Como não somavam o quórum legal para a criação da cooperativa, decidiram abrir para seus companheiros e criar uma organização mista. 

A cooperativa é fruto também de projetos já realizados anteriormente, como a Padaria Comunitária, criada em 1995, e da própria atuação da Pastoral da Criança com a nutrição infantil, como lembra Cleidiana Oliveira Agostinho, agente social e filha de Maria Lúcia. Após cinco anos de produção no salão comunitário, foi construída a sede que hoje está dentro das exigências sanitárias, com os selos regularizados. Todo o trabalho é feito em parceria com a Cooperativa Grande Sertão e conta com apoio do CAA. 

Ela conta que a cooperativa veio apoiar não apenas a renda, mas também a socialização e a educação no território. Cleidiana é bióloga e estudou Ciências Sociais. Com sua atuação no projeto Bem Diverso, como voluntária das Nações Unidas, desenvolveu um olhar para a gestão da cooperativa e os ganhos comunitários. Além das polpas de frutas do Cerrado, a cooperativa também conta com um grupo de coletores de sementes e um viveiro, cuidado especialmente pelas mulheres. Ela relata que o maior desafio hoje foi a paralisação dos convênios junto às escolas. Sendo as polpas de frutas o carro chefe, ainda não conseguem ver uma saída eficaz em tempos de pandemia. 

O fazer junto na cooperativa foi o suporte para os últimos dois anos que antecederam à criação da RDS Nascentes Geraizeiras. As mulheres contam que foram os anos mais desafiadores de suas vidas, marcados pela pressão psicológica, por disputas internas comunitárias e mesmo pelo medo da morte. Com uma espécie de força divina, a leitura dos versículos do livro de Ezequiel foi essencial, diz Maria Lúcia. A leitura sagrada agiu como bússola do coração. Nesses tempos de aflições, as visões de descanso e a presença de uma santuário fizeram com que nenhuma delas desistisse. 

Após a criação da RDS e 5 anos após a primeira romaria, o Santuário foi criado. E juntamente com o Pequizeirão, maior pequizeiro do mundo, localizado na comunidade Riacho do Mato, os lugares sagrados fortalecem a conexão entre os geraizeiros. Como as águas que correm hoje protegidas, essas mulheres ainda não puderam descansar totalmente. A vigília do território conta com a gestão da Unidade de Conservação e também das famílias que se dividem nessa tarefa.

Romaria rumo ao Santuário de São Francisco de Assis em Chapadão do Areião, marco sagrado para a comunidade. Foto: Valdir Dias

Um dos sonhos de Neusita é que toda a comunidade compreenda a importância desse trabalho de conservação aliado aos povos, sendo a comunicação vinda com leveza. Ter um lugar para descansar e partilhar de momentos de lazer e celebração é um sonho coletivo. Esse espaço tem sido cada vez menor devido às intensas agendas políticas e comunitárias. 

Já o sonho de Cleidiana é ter um governo em atuação junto com as pessoas, sem aumentar o sofrimento de quem está há tempos nas trincheiras desse país. Um sonho de Brasil melhor, em que, mesmo sendo utopia, não existisse mais a desigualdade que mata. 

Maria Lúcia sonha com o verde, com as nascentes do Gerais correndo novamente. Ver as árvores tomando conta do seu lugar de origem. Acredito que seja por isso que se tornou uma das guardiãs das sementes. 

De tudo, o que fica é a alegria da prosa bem dada ao longo desses 15 dias de trocas pelo WhatsApp. E se pudesse escrever um sonho para agora, seria atravessar o rio pela primeira vez em direção à Água Boa II, passar uns dias no Gerais do lado de lá do Velho Chico. Esse sonho é antigo, mas já está lançado para o Universo. Já vejo daqui uma roda linda de mulheres falando sobre comercialização e celebração. Tomando o café que foi parte das cestas básicas do Nutre, plantado no Rio Pardo de Minas, vejam só como são as leis dos encontros. 

E tomar da água dessas nascentes que hoje correm livres do perigo alheio.

Foto em destaque: Breno Lima 


* Damiana Campos é editora executiva da Manzuá, ativista quântica e terapeuta. É membro fundadora do Rosa e Sertão, colaboradora do CineBaru, membro do Grupo Diadorina de música e narração de histórias

** NOGUEIRA, Mônica Celeida Rabelo. Gerais a dentro e afora: identidade e territorialidade entre geraizeiros do Norte de Minas Gerais. 2009. 233 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2009.

*** Para ler nas palavras de Maria Lúcia: AGOSTINHO, Maria Lúcia Oliveira. Reserva de desenvolvimento sustentável: saberes, lutas e contribuições da comunidade Água Boa II nessa conquista. 2017. 68 f. Monografia. (Educação do Campo). Universidade Federal de Minas Gerais.

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