No zumbido da abundância

O sítio Roseiral é um pontinho verde no meio de um mar de lavouras de soja. De longe na estrada é possível avistar a casa de Lúcia Ribeiro e Wilson Miguel, nas proximidades da sede de Chapada Gaúcha, no norte de Minas Gerais. A região é conhecida por paisagens radicalmente opostas: perto da cidade, as lavouras de monocultura se estendem a perder de vista, em cultivos de soja e capim, herança da colonização gaúcha na década de 80. Já nos arredores das comunidades tradicionais da zona rural, o que salta aos olhos são as fileiras de buritis que margeiam as veredas, num Cerrado selvagem e exuberante.

Lúcia é uma sertaneja de voz grave e sorriso aberto. Chegou com os pais e irmãs à Chapada no fim dos anos 90. A família se instalou no terreno vizinho ao que vive hoje, que seu pai, vaqueiro e contador de histórias, batizou de Sítio do Picapau Amarelo. Mais tarde, já professora da rede de educação infantil do município, Lúcia precisava de uma palestra para o Dia da Água e levou o pedido para a Funatura, a Fundação Pró-Natureza, antiga parceira da escola. Mas dessa vez quem topou a empreitada foi o rapaz recém-chegado de São Paulo, o agrônomo Wilson. A palestra foi um sucesso e o encontro também: juntos desde então, eles já vivem há 12 anos no local.

Há 12 anos, Lúcia e Wilson esverdeiam a propriedade nos arredores de Chapada Gaúcha. Foto: Kika Antunes

“Quando nós chegamos, não tinha nenhuma árvore. Não tinha os eucaliptos, aquele verde ali, o quintal. A não ser esse cerradinho que foi preservado ali do lado”, Wilson relembra. “Meu sogro criava gado e plantava capim para colher a semente. Isso aqui era tudo braquiária”. Para imaginar, é só correr os olhos ao redor da propriedade de 12 hectares, imersa na imensidão de cor de burro-quando-foge. “Aqui não tinha pássaro nenhum. Agora vem tucano, arara, papagaio. Fora os passarinhos pequenos, canário, joão-de-barro, bem-te-vi”, Lúcia completa. Não é por acaso que o sítio causa frisson entre os passarinhos. O quintal enche os olhos de qualquer visitante – seja gente, seja bicho. Ela mostra com gosto os canteiros de sálvia, hibisco e camomila, o pé de jabuticaba, o limãozinho e o maracujá, as margaridas, os cravinhos e as dezenas de folhagens e plantas ornamentais que margeiam o terreno.

A família foi esverdeando a propriedade aos poucos. Com a madeira dos eucaliptos, Wilson construiu o curral e agora está planejando um galinheiro. Há três anos, eles começaram a erguer uma agrofloresta, que já ocupa um hectare do terreno. “Daqui a 10 anos isso aqui vai virar um bosque”, ele planeja. Wilson explica que a agrofloresta é uma técnica de plantio misto, uma espécie de floresta cultivada, mantida a partir de um sistema simples de irrigação e autorregulada pelas plantas que crescem ali. “Onde tem árvore, outra planta cresce, como acontece com uma floresta. Ó o cacho de banana. Essa aqui é uma embaúba, uma árvore de apoio, que cresce rápido e morre rápido. No lugar dela vão ficar as frutíferas depois. Esse outro aqui é um sabugueiro, que tá apoiando uma graviola”.

Lúcia cultiva no quintal árvores frutíferas e flores, que ajudam a polinização e abrandam o calor. Foto: Kika Antunes

O próximo projeto para o sítio é construir uma casa de mel, com o apoio do amigo analista ambiental José Elias Pereira Lopes, que chega de caminhonete para trazer uma caixa de abelha de madeira que fez a partir de adaptações de modelos que copiam a estrutura das colmeias e ninhos na natureza. “Essa aqui é pras nossas nativas: dá pra jataí, uruçu nordestina, marmelada, turbina”, ele mostra. Na infância, a família de Zé Elias se mudou para o interior de São Paulo e ele foi matriculado em um colégio agrícola. “Lá eu comecei a ver a apicultura, trabalhar com apicultura e tomei amor”, ele relata. Quando voltou, passou a ser invariavelmente convocado para remover enxames indesejados e colmeias inconvenientes. “Todas as abelhas aqui de Chapada é de Zé Elias, né?”, ele brinca. “Quando o povo vai queimar, vai matar, eu tiro o enxame e levo pra casa ou trago aqui pra matinha de Wilson”.

Zé e Wilson se aproximaram no projeto de desenvolvimento sustentável em torno do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, promovido pela Funatura. A proposta era trabalhar com as comunidades ao redor da Unidade de Conservação para identificar afinidades produtivas e potencializar atividades geradoras de renda, como o extrativismo de frutos do Cerrado, a fabricação de farinha e o turismo de base comunitária. A apicultura acabou sendo um dos eixos do projeto e Zé Elias tornou-se uma referência sobre assunto na região.

Além do retorno financeiro que trazem para os produtores, as abelhas são aliadas fundamentais para a conservação do Cerrado. “A apicultura veio justamente porque a cultura do fogo ainda é muito viva. Se o cara tá criando abelha, não vai botar fogo no Cerrado, porque precisa das plantinhas lá, para as abelhas coletarem o néctar”, Zé Elias reflete. Assim, a atividade acaba casando bem com a agricultura familiar. “Ó o Wilson, aqui: ele não precisa botar fogo pra obter o resultado”. Zé explica que a agrofloresta está relacionada a uma ideia de agricultura da abundância. “Toda vez que você entra ali, você tem o que comer. Você colhe um abacaxi, uma banana, as hortaliças. E o passarinho come também”. É uma lógica de cooperação, em que todo mundo ganha. “E você não vai usar um veneno lá pra matar um inseto, porque o inseto faz parte”.

De fato, abelhas de todos os tipos são habitués da jovem agrofloresta do Roseiral. “Elas gostam disso aqui, ó como elas trabalham”, Wilson mostra o zum-zum perto do pé de sabugueiro. “O movimento delas é de tardezinha e de manhã. Você vem de manhã cedinho, tá cheinho de abelha”. O cardápio é vasto, entre espécies frutíferas, plantas do cerrado, ornamentais e forrageiras. “A abelha aqui vai ser um complemento muito bom, porque tem a florada. A maioria das plantas aqui dá flor. E quando a abelha poliniza, aumenta a produção de frutos”, o agrônomo comenta. 

Abelhas são mundialmente reconhecidas por seus serviços de polinização, fundamentais para a reprodução das plantas e para a garantia da biodiversidade. Como explica a bióloga Mônica Meyer, professora aposentada da Faculdade de Educação da UFMG, a polinização é o processo de transferência do pólen, que é a célula masculina das flores, para o estigma, estrutura que abriga a célula feminina. Sem essa transferência, não há a fecundação. E, sem fecundação, não há reprodução. “O pólen está num órgão chamado antera. A parte feminina está num outro órgão, dentro do estigma. As anteras são localizadas abaixo do estigma. Então, na estrutura da flor, é fundamental alguém que transporte o pólen. Pode ser o vento ou a água, mas frequentemente são animais que cumprem esse papel”, ela descreve. 

Todo animal que carrega o pólen das estruturas masculinas para a estrutura feminina da flor é considerado um polinizador: insetos como abelhas, moscas, besouros e mariposas são experts nesse serviço, além das diferentes espécies de pássaros. O biólogo Augusto Gomes lembra ainda da importância dos morcegos nesse processo: “por serem animais alados, que voam muito e se deslocam por grandes distâncias, eles têm uma capacidade muito grande de transportar o pólen. Além de contribuir para a reprodução, eles também aumentam a variabilidade genética das plantas e contribuem para manter o ambiente saudável”.

Ao longo do processo evolutivo, as flores foram aperfeiçoando mecanismos para atrair esses bichos. “Cada planta tem uma morfologia, uma forma específica para atrair determinados tipos de polinizador. Uma planta que é polinizada por um beija-flor geralmente vai ter uma forma, uma cor, um cheiro diferente de uma planta que é polinizada por uma abelha, que é diferente de uma planta que é polinizada por um morcego”, Augusto explica. Morcegos são responsáveis por grande parte da polinização do pequi, por exemplo, que desenvolveu flores atrativas para esses animais, por sua forma e cheiro.

Há plantas com flores mais generalistas, que atraem todo tipo de animais, e outras extremamente especializadas. Augusto descreve especializações bastante particulares, como a flor da bananeira. Em formato de concha, ela reflete o sonar dos morcegos – como se fosse um aeroporto à noite, com as luzes piscando para orientar o voo em sua direção. “Isso é o que a gente chama de sinal acústico. Uma assinatura acústica para que o morcego identifique a planta com seu sonar”, ele diz. “Um exemplo interessante de como os morcegos evoluíram em conjunto com a planta, um ajudando o outro”.

Uma história famosa de relação simbiótica entre flores e seus polinizadores é o caso da Mariposa de Darwin. No século XIX, o naturalista inglês encasquetou com uma espécie de orquídea endêmica da ilha de Madagascar. A estrutura masculina da flor, onde o néctar era depositado, possuía mais de 20 cm de comprimento, o que levou o pesquisador a afirmar que deveriam existir mariposas ou traças com trombas compridas o suficiente para alcançar o nectário e, em consequência, polinizar a planta. A hipótese só foi confirmada mais de 20 anos depois da morte de Darwin, quando foi descoberta na região uma mariposa com a exata morfologia que ele havia previsto.

O entomólogo Leandro Pereira Polatto, pós-doutorando da Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais da UFGD, explica que plantas com flores especialistas, como a orquídea que impressionou Darwin, são eficazes em se reproduzir em ambientes que não sofreram processos de degradação, onde é possível encontrar seus polinizadores em abundância. “Por outro lado, em ambientes degradados, há predominância de plantas com flores generalistas, considerando que nesses locais há uma diversidade menor de polinizadores”, ele relata. Um animal qualquer que visite uma flor generalista tem baixa capacidade de transferência de pólen aos seus estigmas. Mas é melhor garantir esse processo, ainda que em pequenas quantidades, do que estar adaptado a um animal altamente eficiente, porém extinto na região. Se você é uma orquídea em uma região que já sofreu impactos consideráveis, pode não ser uma boa ideia depender de uma única espécie de mariposa para assegurar sua permanência como espécie.

Por seus corpinhos miúdos e seu apetite voraz, as abelhas costumam ser polinizadoras excelentes. “Se você amplia uma fotografia de uma abelha dentro de uma flor, é uma coisa maravilhosa. Ela está completamente dourada, com o corpo inteiro incrustado de pólen”. Quem descreve é Mônica: “quando ela está ali sugando o néctar, se lambuzando, ela está praticando a polinização, levando o pólen para o estigma”. Elas buscam as plantas atraídas por diferentes recursos: os indivíduos adultos se alimentam basicamente do néctar, o líquido açucarado produzido por algumas flores. O pólen vai fornecer a proteína para fabricar a geleia real, que alimenta as larvas e a abelha rainha. Até a resina de cascas e troncos de árvores é aproveitada pelas abelhas, que vão utilizá-la para a produção do própolis.

De volta aos ninhos, elas trabalham incansavelmente na produção do mel, que fornece energia para os trajetos. Colmeias operam em uma complexa engenharia de cooperação e coordenação, em que as abelhas têm funções específicas de acordo com a fase da vida. “As abelhas nascem, passam a ser faxineiras, nutrizes e depois engenheiras. Depois desenvolvem o ferrão, passam a ser soldado para defender a colmeia”, Zé Elias explica com intimidade. “Por fim, tornam-se campeiras: vão a campo trabalhar, coletar néctar, pólen e água. Tudo isso em 45 dias”. Ele conta que as colmeias são ambientes úmidos e que as abelhas trabalham inclusive para resfriar e aquecer o ninho, de acordo com as necessidades, para manter a temperatura ideal. “Se ela não fizer isso, vai dar fungos, bactérias, essas coisas todas”.

Referência da apicultura da região, Zé Elias via de regra é convocado para remover enxames indesejados e ajudar no cuidado com as colmeias. Foto: Kika Antunes

Mônica compartilha da admiração do apicultor: “as abelhas são insetos muito interessantes. É impressionante como são harmoniosas, como constroem a colmeia, como selecionam as melhores floradas”, ela comenta. “Isso tudo, nós, que não somos abelhas, vamos aprendendo”. A professora comenta que Guimarães Rosa parece instigado por esse conhecimento em seus diários de viagem pelo norte de Minas Gerais. “As abelhas atraem Guimarães Rosa, que deseja aprender tudo que os vaqueiros sabem. Ele viaja pelo sertão em 1952 com vaqueiros que mal sabiam ler, mas compreendiam a natureza como ninguém”, ela interpreta. “Ele menciona a uruçu, que mora no chão. A marmelada, que ninha na madeira. A mumbuca, a cupinheira, a arapuá”.

Entre os apicultores brasileiros, a abelha mais famosa é a Apis mellifera, também chamada de europeia africanizada ou simplesmente “oropa”. Antônio Guedes, mais conhecido como Cigano, apicultor e produtor rural da comunidade de Cabeceira de Mandins, em Januária, explica que a Apis é uma espécie produzida a partir do cruzamento entre espécies dos dois continentes: “eram dois tipos de abelha. Uma produzia muito mel e era brava. A outra era mais mansa, mas não produzia tanto. Aí foram fazendo um cruzamento”, ele relata. “Nos anos de antigamente ela veio de fora, mas hoje ela é típica do Brasil”.

Essa espécie foi introduzida no país em meados da década de 40, como relata Leandro. “Ela é uma perfeita polinizadora”, ele avalia. Além da voracidade na busca por alimento e da alta capacidade de estocar pólen e mel, a espécie se adaptou muito bem ao ecossistema sertanejo. “O Cerrado é uma região de savana, muito semelhante ao ambiente de algumas regiões da África. Então, ela encontrou um local muito semelhante à sua região de origem”. Por essas características, grande parte dos projetos que buscam aliar a apicultura à agricultura familiar utilizam a Apis como produtora.

Mas as abelhas nativas da região também podem ser manejadas para a produção de mel. “As nossas nativas são as meliponas. São abelhas como a jataí e a tubina, que não têm ferrão”, ele descreve. “Mas têm uma mordida forte!”, adverte. A qualidade do mel produzido é diretamente relacionada à florada – ou seja, às diferentes espécies de flores de onde as abelhas tiram o néctar e o pólen. No Cerrado, as floradas são diferentes da Mata Atlântica, onde há plena disponibilidade de flores o tempo inteiro. “A jataí, às vezes você não sabe de onde ela tá tirando o néctar, mas a bichinha tá ali forte, resistente e tá trabalhando”, conta Zé Elias. Na região, as floradas do pequi, da cagaita e do cipó-uva, também conhecido como timbó, costumam render bastante mel. Cigano comenta que o mel da florada de aroeira, nas regiões de Mata Seca, vem chamando a atenção do mercado. “Ele antigamente era um mel excluído, porque tem a coloração escura. Agora está vendendo muito, porque descobriram propriedades medicinais”.

“A abelha sem o Cerrado não vai pra frente, o Cerrado sem a abelha também não vai. Se não tiver a polinização, o Cerrado não consegue produzir”, Cigano argumenta, enfático. “Acaba a descendência das árvores”. O biólogo Braulio Dias, professor de ecologia da Universidade de Brasília e presidente da Funatura, atesta que mais de 90% das espécies de plantas silvestres dependem de animais para fazer a polinização – e as abelhas são as principais envolvidas. “A polinização é um serviço ecossistêmico fundamental. É um fenômeno muito relevante do ponto de vista ecológico, para manter a natureza funcionando”, ele avalia. De alguns anos para cá, as abelhas têm ganhado atenção mundial por seu papel também na garantia da segurança alimentar.

Quando não dependem diretamente dos polinizadores para a geração de frutos, espécies centrais para a agricultura apresentam um salto de produtividade quando são visitadas por esses animais. “Aqui no Cerrado, a atividade agrícola mais importante é a soja. Hoje já se sabe que, dependendo da variedade da soja, os polinizadores podem aumentar a produção em até 15%”, Braulio relata. “As pesquisas aqui no Brasil mostram que cafezais próximos de vegetação nativa têm uma produção 30% maior do que cafezais longe de florestas ou de Cerrado”. Outras culturas locais também são diretamente beneficiadas pela polinização animal, como o maracujá, o algodão e o tomate.

O Relatório temático sobre polinização, polinizadores e produção de alimentos no Brasil, lançado em agosto do ano passado, revisita a literatura científica sobre as espécies cultivadas no Brasil e apresenta um cálculo do valor do serviço realizado por abelhas e outros polinizadores para a nossa agricultura. “Quando você soma a importância da polinização para cada espécie cultivada, a estimativa é de R$43 bilhões por ano”, Braulio relata. Infelizmente, muitos dos maiores interessados nessa cifra ainda não se dão conta de como essa parceria é fundamental. “Ainda é comum que se destrua a vegetação no entorno das lavouras. Muitas abelhas fazem ninho dentro de ocos de árvores. Se você queima ou derruba as árvores mais antigas, isso vai reduzir a população de abelhas na região e prejudicar a polinização das lavouras”, ele explica.

O uso indiscriminado de agrotóxicos é outra ameaça para os polinizadores que se volta contra os próprios produtores. Como Braulio pontua, grande parte dos inseticidas não é específica. Isso quer dizer que eles são nocivos não apenas para as pragas, mas para todos os seres que frequentam as lavouras, inclusive os polinizadores. Augusto explica que o veneno não é eliminado ao longo da cadeia alimentar. O que acontece é o contrário, em um fenômeno conhecido como bioacumulação. “Se esse agrotóxico cai na água ou é jogado nas plantas, ele vai sendo acumulado ao longo da cadeia alimentar. Um morcego, que vai ser o predador de um inseto, vai sentir muito o efeito desse agrotóxico”, ele alerta. “Assim como acontece com a gente quando ingerimos um alimento contaminado”. A redução da população de polinizadores desequilibra toda a cadeia, abrindo espaço para pragas e insetos mais resistentes.

A agricultura familiar também sofre com os impactos do veneno. A agrofloresta de Wilson pode ser um oásis para as abelhas, mas não consegue se blindar da pulverização na vizinhança. “Aqui em volta, tudo é lavoura. Eles jogam veneno direto e a gente acaba vivendo no meio do veneno aqui. Eu plantei eucalipto como um quebra-vento, uma cortina contra o veneno. Mas se a abelha for à lavoura pulverizada, morre tudinho”, Wilson desabafa. Em suas andanças pelas comunidades de Chapada Gaúcha, Zé Elias conta que é comum que mesmo os pequenos agricultores caiam na cilada dos agrotóxicos, prejudicando a produtividade da roça e também a sua própria saúde. “Essa cultura do veneno, que vem da monocultura, às vezes o pequeno produtor usa lá dentro das veredas pra secar mato, imunizar o feijão. E de forma pior ainda, porque ele não tem dinheiro pra comprar luva, pra usar os equipamentos de proteção”, ele denuncia. 

Além do desmatamento e do uso dos agrotóxicos, os polinizadores do Cerrado enfrentam ainda outras ameaças. A expansão descontrolada da atividade de mineradoras em áreas de caverna, por exemplo, traz consequências nefastas para espécies como o morceguinho-do-cerrado, encontrado apenas na cordilheira do Espinhaço, em Minas Gerais e na Bahia. Augusto relata que as perspectivas das pesquisas recentes na região não são animadoras. “Em função da destruição do habitat, as projeções são de um futuro catastrófico para esses morcegos – e para todas as plantas que dependem deles para a reprodução”, ele afirma. No caso das espécies que desenvolveram flores especialistas, a extinção do polinizador pode ser fatal.

Em relação às populações de abelhas, Zé Elias denuncia que as espécies nativas têm sido particularmente impactadas nos últimos tempos. “A jataí está ameaçada de extinção. São abelhas importantíssimas para a horticultura, que polinizam o coentro, semente de alface, abóbora. As jataí, as trigonas todas, são abelhas importantíssimas para o bioma Cerrado”, afirma. Leandro explica que, embora conviva bem com as espécies nativas em condições de preservação ambiental, a Apis mellifera acaba dominando os recursos disponíveis em ambientes degradados e pode acabar prejudicando as abelhas locais.

Para reverter esse quadro e proteger as populações de abelhas e de outros polinizadores, seria fundamental fortalecer as políticas ambientais. Braulio comenta que uma iniciativa internacional a favor dos polinizadores tem sido liderada pela Holanda, com adesão de cerca de 30 países. “A ideia é estimular os governos a criarem iniciativas em prol da manutenção e recuperação dos polinizadores, particularmente no contexto de paisagens onde haja produção de alimentos”, ele afirma. O Brasil ainda não aderiu à iniciativa.

Augusto é categórico em relação às suas expectativas diante da postura do governo federal: “o cenário é catastrófico”. Ele relembra que nos últimos 10 anos, da mudança de legislação das cavernas até o novo Código Florestal, as decisões têm afrouxado a proteção ambiental e permitido uma exploração ainda mais agressiva dos recursos coletivos. Com a liberação recorde de novos agrotóxicos e o desmantelamento da política climática, o cenário não parece mesmo nada promissor. “O governo atual tem adotado políticas totalmente antiambientais, de desmonte dos órgãos e corte dos recursos destinados à fiscalização. É uma política ambiental que vai totalmente na contramão tanto da biodiversidade quanto da nossa própria segurança alimentar, do combate de pragas”, ele critica. 

A despeito das investidas que vêm de cima, comunidades em diversos grotões têm se organizado com o apoio de técnicos e entidades de extensão rural para criar alternativas de convivência e manutenção do Cerrado em pé. Nos arredores de Mandins, na região de Januária, Cigano lidera o movimento dos veredeiros, em iniciativas para resgatar o manejo tradicional da várzea de rio e impedir o desmatamento, garantindo a soberania das comunidades tradicionais. Wilson e Zé Elias rodaram as comunidades nos municípios vizinhos da Chapada, espalhando a palavra do manejo sustentável. Em Arinos, a Copabase desenvolve há anos a implantação de apiários para a proteção de nascentes e garantia de sustento para pequenos produtores da região. 

A rigor, Cigano, Wilson e Zé Elias são também, eles mesmos, polinizadores. Em vez de transferirem pólen, seguem compartilhando um saber fazer que é conhecimento da natureza também. “Esse conhecimento, seja das abelhas ou dos produtores, é essencial para que haja produção de alimentos. Sem o conhecimento das técnicas de manejo, também não é possível fazer a transmissão de um saber”, Mônica reflete. Wilson arremata: “nessas idas ao campo, você tá fazendo isso, jogando ideia o tempo todo”, elabora. “Tem ideia que pega e você vai fecundando a história”.

Foto em destaque: Kika Antunes


* Carol Abreu é jornalista, educadora e percussionista da banda Djalma não entende de política.

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