Um passarinho entre mais de 1.970 espécies de aves já registradas por pesquisadores, cientistas e observadores de pássaros no Brasil. Um país que ocupa um dos três postos de países com maior taxa de registros de aves no mundo, junto da Colômbia e do Peru, e de taxa de endemismo — que mede as ocorrências de pássaros endêmicos, ou seja, exclusivas daqui — ao lado da Austrália e da Indonésia.
O que esse pássaro tem de tão especial? E o que faz um grupo de pesquisadores e ambientalistas dedicar tempo, buscar recursos, articular organizações, enfrentar burocracias e redes de caçadores para que essa ave volte a ser vista na natureza?
“O bicudo, assim como qualquer outro ser da natureza, é um elemento importante da biodiversidade. Ele cumpre o seu papel ecológico, relaciona-se com outras espécies de aves, de animais em geral e de vegetais. É predado por outros animais e alimenta-se de algumas espécies de plantas, em uma cadeia muito grande” que nos revela o complexo sistema da vida no planeta.
Biólogo e professor adjunto da Universidade Estadual do Maranhão, onde coordena o Laboratório de Ornitologia, Flávio Kulaif Ubaid desenvolve pesquisas com aves ameaçadas de extinção e começou a observar e buscar informações sobre o bicudo por volta do ano de 2008. Registrou pessoalmente um único pássaro na natureza e percebeu que praticamente não havia literatura sobre a biologia dessa espécie em livros e artigos. Mas, de maneira contraditória, o bicudo não era um passarinho tão desconhecido. Flávio sabia que havia muitos deles em gaiolas, comercializados por criadores atraídos, sobretudo, por seu canto extremamente potente e melódico. Então começou a tentar mapeá-lo, saber como ele era, onde ocorria na natureza e quais eram seus hábitos de vida. Por meio de um primeiro projeto, buscou percorrer todas as áreas do Brasil para saber onde existiam registros do bicudo. “Ele ainda existe nesta localidade? Quantos indivíduos vivem aqui? A ameaça ainda existe? — Ou seja, há caçadores que frequentam esta localidade para capturar o bicudo? Como é a morfologia desse pássaro? E sua genética? Em que condições ele se alimenta e se reproduz? Poderá ser ‘devolvido’ à natureza?”
Todas essas informações foram essenciais para entender que caminhos seguir para propor um programa de reintrodução do bicudo em seu habitat natural e seguro.
“O bicudo foi caçado intensamente em todo o Brasil durante mais de um século. Os relatos registram as aves em cativeiro desde o século XIX. Seguramente, esse foi um dos principais motivos que levaram o pássaro a desaparecer da natureza, o que infelizmente fez com que ele atingisse um valor muito alto no comércio de animais de cativeiro, tanto no comércio legal quanto no comércio ilegal. É uma ave que ficou muito valiosa por seu canto, aliado a sua relativa raridade, levando a espécie à quase extinção no território brasileiro”, conta Flávio.
Mas um passarinho mantido em cativeiro, geralmente em gaiolas pequenas e criados individualmente, não pode ser simplesmente solto na natureza, pois preso ele não teve condições de aprender a sobreviver. Não tem força de voo suficiente para escapar de predadores e buscar alimentos, não conviveu com outros pássaros e nem reconhece as plantas de que necessita para nutrir-se. E foram justamente alguns criadores que se dispuseram a ajudar, fornecendo exemplares que pudessem ser utilizados no projeto.
“Nós temos que passar essas aves por uma série de procedimentos para que elas possam sobreviver, se alimentar e fugir de predadores quando retornarem para a natureza. Uma das etapas, por exemplo, é realizar uma bateria de exames para verificar a presença de doenças, pra gente devolver uma ave saudável à natureza. Isso é bom tanto para a ave em si quanto para as outras espécies que vivem no ambiente do bicudo, eliminando riscos de transmitir qualquer doença. Uma segunda etapa é ensinar esses pássaros a se alimentarem, a buscarem o alimento que vão encontrar na natureza — que no caso do bicudo são algumas sementes muito específicas de algumas plantas que crescem nos brejos — e então, quando as aves ainda estão na gaiola, nós oferecemos essas sementes. Com o passar do tempo, elas vão reconhecendo essas sementes como alimento, pra que quando forem soltas possam bater o olho e já reconhecer aquilo. Outra etapa muito importante é que essas aves tenham uma autonomia de voo que garanta que elas consigam fugir de predadores e realizar alguns deslocamentos em busca de alimento. Para isso, precisam ter a musculatura do peito, que é a musculatura responsável pelo bater das asas, fortalecida. Precisamos ajudar a desenvolvê-la, por isso alocamos os bicudos em viveiros grandes, onde eles têm condição de voar bastante.”
É preciso recursos, estudos, tempo, paciência, empenho e profundo carinho para fazer esse trabalho. A escolha do local para recolocar o bicudo na natureza é outra etapa fundamental. Afinal, se o risco está na captura para o comércio ilegal, é necessário escolher territórios mais protegidos da ação de caçadores, com fiscalização eficiente. Ainda que alguns locais tenham histórico de registro da presença dos bicudos, como alguns parques nacionais em regiões de Cerrado onde eles já foram vistos e hoje não mais encontrados, muitas vezes os esforços de gestão desses locais ficam concentrados em ações como combate a incêndios, com limitação de equipes e veículos que auxiliem na fiscalização.
Por isso, a equipe do projeto — reconhecendo que as etapas de soltura e reintrodução exigiam atenção específica— escolheu uma área de Reserva Particular do Patrimônio Natural, a RPPN Porto Cajueiro, com cerca de 9 mil hectares e localizada no município de Januária.
O também biólogo e ambientalista Gustavo Malacco, que se dedica à ornitologia e tinha o bicudo como “uma daquelas espécies colocadas em top 5, que eu desejava demais avistar na natureza”, foi convidado para desenvolver um projeto de levantamento de aves na Porto Cajueiro. Diretor de Sustentabilidade da Associação para a Gestão Socioambiental do Triângulo Mineiro — Angá, Gustavo conversava com os moradores no entorno da Porto Cajueiro e sempre escutava alguém dizer que ali havia bicudos, mas que eles tinham desaparecido. Ele conta que “o bicudo é uma espécie que habita áreas alagadas, veredas, onde tem que ter aquele capim nativo, aquele capim-navalha, o tiririca, um alimento que ele aprecia muito e é o ambiente perfeito do pássaro. Quando cheguei na reserva e vi aquele mundaréu de veredas com tiriricas, já sabia que ali poderiam ser desenvolvidos projetos dessa natureza”.
Flávio já atuava na reintrodução da espécie no interior de São Paulo e havia feito uma busca bem significante em vários locais do Brasil, principalmente no cerrado, onde chegou a encontrar uma pequena população de bicudos no Mato Grosso. Gustavo conta que conheceu Flávio expondo sobre o projeto em um congresso e identificou as dificuldades que o colega enfrentava na segurança dos bichos ameaçados pelo tráfico. Foi quando ele mesmo se apresentou e ofereceu ajuda.
“Daí para frente construímos viveiros de aclimatação lá dentro e toda a estrutura necessária, o Flávio já tinha uma rede de criadores conservacionistas, criadores amadores que já estavam doando bicudos para soltura ao projeto em São Paulo. Vieram principalmente de lá as espécies para serem reinseridas aqui em Minas Gerais. Em 2018 e 2019, foram realizadas várias reintroduções de bicudos.”
Os obstáculos foram e são muitos. Mallaco conta da alegria de poder acompanhar uma fêmea construindo o ninho da espécie já na natureza depois de ser reintroduzida, em seguida colocando ovos. Porém, infelizmente, os predadores foram mais rápidos. Depois, a pandemia obrigou a paralisação do processo por cerca de 18 meses e agora eles buscam verificar se os pássaros sobreviveram. A espécie costuma percorrer grandes distâncias quando está adaptada e por isso espera-se que mesmo sem vê-los eles estejam pela reserva.
Os biólogos são persistentes: “a gente não achava que no período tão curto de dois meses um casal viria a se acasalar e fazer um ninho. Foi algo fantástico, por isso podemos afirmar que vai dar certo, é questão de tempo, de escala e de paciência. As aves que nós reproduzimos até agora têm respondido de uma maneira muito satisfatória, os protocolos que nós implementamos para reabilitação têm se mostrado muito eficientes. Agora é partir para o próximo passo que é aumentar o número amostral e implementar um criatório conservacionista na área, evitando a necessidade do transporte, que é extremamente burocrático e demorado por causa da legislação imprecisa sobre esse tipo de ação a partir de pássaros de cativeiro”.
Depois, é preciso que não apenas a área seja segura, mas que a comunidade local seja envolvida, que exista confiança mútua. Os gestores do projeto já pensam que a criação dos pássaros dentro da própria reserva para sua reinserção vai colaborar para que o território seja o local mais expressivo de registro do bicudo livre na natureza, atraindo observadores e gerando outras formas de renda.
Gustavo acredita que não é apenas a biodiversidade que vai ganhar com o projeto: “para se ter uma ideia, hoje, ou você vai para a Bolívia ver esse bicho, ou não se tem um local certo para observá-lo em qualquer outro lugar do mundo. Você pode viajar para o Mato Grosso, por exemplo, e não ver o bicho, pois mesmo ali são poucos que resistiram. E o bicudo torna-se uma oportunidade de turismo ecológico e de monitoramento participativo. Seria muito lindo, muito emocionante, que as comunidades pudessem ser conhecidas pelos turistas — como o Anísio que faz rapadura ali em Porto Cajueiro — e que elas participassem da conservação do bicudo. Só que tem que ter muita paciência. Demora, demora… Mas a gente entende que o projeto vai ser um modelo para ser replicado por todo o sertão de Minas Gerais, da Bahia e do Brasil”. ∞
*Marcela Bertelli é antropóloga, produtora cultural, editora da Manzuá, diretora da Lira Cultura e coordenadora do Núcleo de Música do Instituto Çarê,