O novo mundo é o Gerais

Baseadas na valorização sociocultural do Cerrado, experiências de geração de renda dão o tom de uma nova relação com as espacialidades semeadas no Gerais

Ainda há quem diga, neste início de século, que o sertão é lugar atrasado e que o “Cerrado em pé” não faz bem às noções de desenvolvimento até então projetadas. Nem todas as pessoas sabem, por exemplo, das múltiplas dimensões e importâncias das veredas e vales, dos rios, suas nascentes e barrancos, das chapadas, dos topos de morro e serras, das cavernas e florestas, da Caatinga, da Mata Seca, do Cerrado e da sociobiodiversidade que aí existe, tão expressiva quanto em outros biomas do país. Trata-se de um discurso cada vez mais vazio em uma sociedade disposta à evolução. A essência das relações sociais e culturais com a natureza é gradativamente reconhecida, transformando percepções colonizadas, despertando a curiosidade, a criatividade e a valorização de outras relações possíveis na produção do espaço que nos mostra os sentidos do existir. Nos sertões do Mosaico Sertão Veredas ‒ Peruaçu isso não é diferente.

Formado por dezesseis áreas protegidas, o território apresenta uma área total de mais de 1 milhão de hectares. Anteriores ao seu território, destacam-se a Terra Indígena Xakriabá, comunidades quilombolas, como a de São Félix, populações extrativistas, projetos de assentamentos rurais, como o São Francisco, e áreas de produção agropecuária que se misturam a corredores ecológicos e diversas reservas legais averbadas. Em meio às áreas protegidas, localizam-se propriedades privadas, onde são desenvolvidas as atividades agropecuárias, voltadas para o agronegócio, como os monocultivos de eucalipto, grãos, café, capim para produção de sementes, exploração de madeira, criação extensiva de gado, silvicultura e agricultura familiar.

A liberdade para o exercício das expressões e visões de mundo no Mosaico marca a busca pela gestão participativa e integrada, traduzindo a possibilidade de aperfeiçoamento dos mecanismos de governança a partir dos arranjos de seu Conselho Consultivo. É fato que, com a “chegada” dos territórios de conservação, é estabelecida uma nova condição das relações sociais nesses espaços. As comunidades, guardiãs das riquezas naturais de onde habitam, se veem na condição, por vezes inoportuna, de compartilhar novos ordenamentos espaciais. Nesse caso, o Conselho Consultivo do Mosaico passa a representar o elo para a superação dicotômica entre governança e governabilidade no contexto da gestão compartilhada de espaços naturais.

No ano de 2008, foi publicado o Plano de Desenvolvimento Territorial com Base Conservacionista (DTBC), que chancela a construção coletiva do Mosaico por povos do Cerrado e da Caatinga no Norte de Minas e Sul da Bahia. Nele, foram apresentadas as peculiaridades regionais, aspectos físicos e humanos de onze municípios e suas diversas localidades, história, identidades e coisificidades do sertão e do ser sertanejo. Além disso, foram apontadas também diretrizes para o desenvolvimento de três eixos: a gestão compartilhada das áreas protegidas, o extrativismo vegetal e o turismo ecocultural de base comunitária.

Toda essa potência evidenciada no Plano DTBC foi desenvolvida com o apoio do Fundo Socioambiental da Caixa Econômica Federal, por meio de um convênio assinado em 2011. Desde então, turismo e extrativismo vêm produzindo, cada um a seu modo, um intenso fluxo de trabalhos, ações e práticas com foco na geração de renda para produtores locais e na valorização das tradições culturais e riquezas naturais.

Produtos da Cooperativa Agroextrativista Sertão Veredas, Chapada Gaúcha – MG. Foto: Maria Ribeiro

Refletir sobre turismo, natureza e cultura a partir das questões aí envolvidas significa ir além da combinação tempo livre-lazer-ócio, conectando os entendimentos aos princípios do turismo comunitário, cuja centralidade está no protagonismo das pessoas, na importância das manifestações culturais, nos valores e modos de vida associativos. De forma paralela e complementar, a lógica do extrativismo vegetal elabora um amplo conhecimento fitoterápico, do artesanato, da estética para um paisagismo sertanejo, dos manejos sustentáveis e da permacultura, dos sistemas agroflorestais, do controle biológico de pragas e doenças.

Entendimentos como a formação de redes, a conservação da agrosociobiodiversidade, a construção de políticas públicas participativas, o fortalecimento de alianças comunitárias e o desenvolvimento socioeconômico deram sentido às práticas e processos desenvolvidos. De um lado, o turismo comunitário é apresentado como estratégia de empoderamento das populações locais, tendo como objetivo a valorização das riquezas naturais e das tradições culturais por meio da gestão participativa e integrada. De outro, o projeto de Extrativismo Vegetal Sustentável consolida a proposta da gestão integrada a partir da geração de renda, da valorização dos modos de vida tradicionais e da agrobiodiversidade.

As experiências buscaram equilibrar a valorização da agrobiodiversidade e da diversidade sociocultural sertaneja, ambientadas nos modos de vida tradicionais do Cerrado a partir de ações ligadas a uma pedagogia para o turismo regional. Compreender a relação entre as formas, modos de vida e, meios de viver no território do Mosaico e a promoção do turismo, com a valorização do extrativismo e da agroecologia para fins de produção, exige atenção ao tratamento dado às comunidades como supostos “territórios da minoria” que questionam e colocam em suspensão certas exigências de uma “civilidade” espacial no lugar de suas existências sertanejas.

Vislumbra-se, no aperfeiçoamento do Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu, a possibilidade de um novo turista, um novo viajante que seja capaz de compreender todas as complexidades evidenciadas pelas experiências de quem vive o Cerrado com suas especificidades. A questão posta é: de um modo geral, o turista, invenção do século XIX, não é mais o viajante que busca na cultura a transformação. Isso não significa negar a existência de um novo turista, responsável e atento aos desafios coletivos da diversidade. O fato é que as viagens mudaram, em todos os rumos possíveis, e com elas mudaram também o turismo e os turistas. Se há um resgate pelos fundamentos mais verdadeiros que estão imbricados no seio da viagem, isso é possível perceber a partir das diversas experiências de turismo comunitário Brasil afora e dos viajantes que seguem fortes na trilha das experiências transformadoras.

Intercâmbio do projeto Turismo Ecocultural de Base Comunitária no Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu. Instituto Rosa e Sertão. Foto: Mariana Cabral

No Mosaico, isso é perceptível por meio das ações de mobilização dos diversos grupos e da maneira como as conversas buscam o equilíbrio. Entre os projetos que valem a pena destacar estão: a proposta de criação da Estrada-Parque Guimarães Rosa, o diagnóstico do calendário de festas tradicionais da região, o diálogo do Mosaico com os Circuitos Turísticos regionais, a inauguração da Trilha do Mato Grande no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, a formação de guias e condutores ambientais, o Encontro dos Povos do Grande Sertão, o Festival Sagarana, as edições do Jornal do Mosaico e a inauguração de seu portal virtual, os documentários e pesquisas acadêmicas que estão sendo produzidas sobre as comunidades locais, seus patrimônios materiais e imateriais, as ações da caminhada sócio-eco-literária “O Caminho do Sertão – de Sagarana ao Grande Sertão Veredas”, a conclusão da implantação de infraestrutura de visitação do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, os estudos arqueológicos, paleontológicos, e espeleológicos, bem como o monitoramento científico sobre mamíferos de médio e grande porte e outros animais que nele ocorre.

Nesse contexto de riqueza e efervescência sociocultural, foram desenvolvidas nos últimos anos ações relacionadas à alimentação e à hospedagem no turismo comunitário, bem como a formação de condutores ambientais, o desenvolvimento de roteiros, assistência técnica e extensão rural, dotação de infraestrutura, educação ecocultural nas escolas, entre outras. Ainda, se integraram ao Plano DTBC, programas de prevenção e combate a incêndios florestais, programas de fiscalização, levantamento da situação fundiária do Mosaico e pesquisas científicas.

Importante destacar ainda o mapeamento e fortalecimento do artesanato e do extrativismo vegetal, a exemplo da Cooperativa Regional de Produtores Agrissilviextrativistas Sertão Veredas (COOP. Sertão) com aproximadamente 200 famílias associadas; da Cooperativa Agroextrativista em base de Agricultura Familiar Sustentável e Economia Solidária (COPABASE) com seus 150 agricultores familiares congregados; da Rede Central Veredas de Artesanato do Vale do Urucuia em seus nove núcleos de produção; da Associação de Bordadeiras e Artesãos Rurais da Serra das Araras; da Associação Amigos de Areião e Adjacências de Januária; e da Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativista de Pandeiros Ltda (Coopae), que reúne aproximadamente 30 famílias.

Dessas importantes redes de coleta, transporte, classificação, padronização, armazenamento, produção, beneficiamento e comercialização, ganham visibilidade e força a extração de polpas de frutos, sementes e especiarias do cerrado como Araçá, Araticum, Buriti, Xiriri, Cagaita, Caju, Cajuí, Coco Indaiá, Coquinho Azedo, Favela, Goiaba Jatobá, Manga, Mangaba, Maracujá, Pequi, Saputá, Tamarindo, Umbu, condimentos como mel, farinha de mandioca, óleo e farofa de pequi, castanhas de Baru, doce de Buriti, licor de Jenipapo, açúcar mascavo, cachaças, rapadura, fava d’anta, de onde se extrai a rutina, entre outros diversos vegetais com propriedades medicinais. Além de inúmeras expressões do artesanato como quadros, bordados, tapetes, mantas, xales, colchas, e caixinhas de buriti. A partir dessas redes, o Sertão está conhecendo o mundo, que por sua vez conhece o Sertão. Os arranjos produtivos já não se esgotam somente na região. Crescentes, as demandas se qualificam e os curiosos, desejosos e apreciadores da espacialidade sertaneja, buscam viajar por estas sertanias.

Trata-se de um momento especial, pois o primeiro trecho dessa importante travessia regional foi coletivamente construído e compartilhado. Chega o tempo de novas análises e contribuições para a consolidação do Mosaico. Com relação ao turismo, é importante dimensionar e monitorar os impactos de sua implantação para então se consolidar novas abordagens sobre essa atividade no Norte de Minas. Com relação ao extrativismo, é necessário analisar como as restrições de uso e acesso aos recursos naturais no contexto do Mosaico podem ser superadas.

Cerâmica das mulheres de Olaria, Candeal. Foto: Maria Ribeiro

Pensar a diversidade dos lugares de viver é fundamental na busca de um possível equilíbrio entre visitantes e visitados. Pensar turismo no território do Mosaico exige a superação da possibilidade de mediação que cerca a condição de turista, estabelecendo espaços de liberdade, reciprocidade, esperança e transformação por meio do contato e articulação direta entre visitantes e visitados. O real espaço da viagem deve ser o da experiência compartilhada e suas mágicas cotidianas. Nesse caso, o sucesso do encontro entre turismo e extrativismo demanda, também, um novo perfil de turista, cujos olhares estarão atentos a esse real espaço das travessias, que não está nem na saída, nem na chegada.

O tão desejado território do amanhã emana das relações e espacialidades produzidas no presente de nossa ligeira passagem. O reconhecimento da sociobiodiversidade existente no Mosaico SVP atualiza a potência transformadora dos processos de gestão integrada de áreas protegidas. Há, neste percurso, um intenso fluxo entre os limites do território e suas culturas, entre os conflitos do racismo ambiental e a construção dos processos de respeito às diferenças. A realização efetiva dessa estratégia no semiárido mineiro e no seu entorno, e os impressionantes desdobramentos emergentes, confirma o Sertão Gerais em mais uma perspectiva: como locus do novo mundo possível, um espaço de biocomplexidade territorial onde as diversas identidades sertanejas cuidadosamente se conectam às viagens contemporâneas e, estrategicamente, se movimentam pela consciência planetária.

Imagem em destaque: Maria Ribeiro


*Hebert Canela Salgado é turismólogo e professor adjunto do curso de Turismo da Faculdade Interdisciplinar de Humanidades da UFVJM.

**Cássio Alexandre da Silva é pesquisador e docente do Departamento de Geociências e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Unimontes

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