Há experiências que parecem incomunicáveis. Mergulhos no mistério. E há outras vivências ainda mais abscônditas, que são facilmente compreendidas quando ficam aquém das palavras, numa cumplicidade feita de silêncios. O mais fundo do ser é um mar de sentidos comuns.
A compaixão, no campo da existência moral, é um exemplo dessa forma de partilha definidora do nosso índice de humanidade. Não sofremos a dor do outro, mas é por meio dela que damos conta de que somos feitos do mesmo barro. Não há o eu sem o outro.
A sensação que vivemos um tempo próprio é também consequência dessa incansável busca de pertencimento. Queremos habitar a mesma linguagem, dividir o mesmo sentimento e, ancorados no momento, retirar do instante um sentimento de eternidade.
Com o espaço ocorre algo semelhante. Não sabemos bem por que, mas há um lugar natural, uma sensação de continuidade com a matéria que nos ata ao chão e nos impulsiona a perseguir outros lugares igualmente naturais, mesmo que jamais cheguemos a pôr neles os pés. Os caminhos da errância.
Para muitas pessoas, o sertão é esse lugar. Mas, possivelmente, em sua abrangência de sentidos, ele se apresenta com uma universalidade muito maior, dominadora, definitiva. O sertão não é apenas espaço, é também tempo, palavra, sentimento. O sertão é o mundo.
Todas essas possíveis veredas obrigam a muito cuidado. Cada dimensão do ser do sertão é exigente de atenção, estudo, cismas. Há a terra, os rios e as gentes. Os ofícios e modos de viver. Um mundo que se mede por fora, em divisas e fronteiras; um universo que se mostra por dentro, como quem desvela um significado apenas pressentido.
Não bastasse a força viva e o cosmos que se expressa no caos da multiplicidade, o sertão é ainda poesia, palavra numinosa, capaz de revelar o indizível em suas camadas de poesia, que vão sendo retiradas de seu silêncio original. O sertão é fonte permanente de revelação, de desvelamento de tudo que foi sendo soterrado pela ação dos homens e das eras. Uma memória que produz o novo. A lembrança do que ainda não foi.
E é tateando, com a calma dos caminhantes e a surpresa infantil das pequenas descobertas, que se pode ir sertão a dentro. Cada traço físico ajuda a compreender um jeito humano de ser. A terra não é cenário para ações, é uma espécie de contingência, um arcabouço de sentido que ao mesmo tempo explica e condiciona; ajuda a entender e dispõe novos motivos. O homem e o sertão não se separam um do outro.
Por fim, antes de empreender a caminhada por terras e águas, é sempre bom lembrar que o sertão se tornou um universo único pelas graças da arte poética de Guimarães Rosa. Se em tudo nosso tempo tem o consolo da ciência como palavra final, quando se figura o sertão o comando vem pela palavra poética. O escritor realizou o projeto heideggeriano de recuperação do logos sem passar pelo estágio adoecido da razão instrumental. Uma filosofia poética.
Na história brasileira, o sertão tem um lugar destacado. De certa maneira, ele sempre se apresentou como um problema, uma escala da preocupação que abrange tanto o pensamento social como o imaginário nacional. Esse interesse se manifesta por meio dos mais diferentes testemunhos e expressões, dos relatos de viajantes à literatura, compondo um perfil que vai do mito à história.
Ricardo Ferreira Ribeiro, no livro As florestas anãs – O cerrado na história de Minas Gerais (Editora Autêntica, 2005), descreve o permanente desafio da região. “Dos primeiros cronistas coloniais, passando pelos relatos e documentos do bandeirantismo e da expansão pecuária no interior, alcançando as notícias das descobertas minerais, se fixando com as narrativas dos viajantes estrangeiros, se consolidando na literatura e na historiografia na virada para o século XX, nele se perpetuando, até se consagrar em preto e branco no cinema, ou a cores na televisão.”
Nessa trajetória, quase como uma força que freia o progresso simbolizado pela civilização do litoral, o sertão se estabelece por muito tempo como uma espécie de espelho invertido, que amplia pela negatividade os índices convencionais do desenvolvimento. De certa forma, o sertão poderia ser visto ao mesmo tempo como resquício a ser superado e memória a ser preservada.
Se o sertão se define como periferia de um sistema que tem o centro cravado no progresso, culturalmente ele carregaria valores que consagram sua universalidade. Quando se fala em sertão, como se registra em várias crônicas de viajantes, algo se aponta sempre adiante. O sertão se desdobra, se anuncia. Está sempre a ser atravessado na próxima légua, na travessia do rio adiante, nos passos que vencem o liso.
Mais que sertão, há um Brasil sertanejo. Uma região que só se compreende a partir de sua dinâmica econômica, social, cultural e de crenças. Em O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil (Companhia das Letras, 1995), Darcy Ribeiro divide em cinco os Brasis na história: o Brasil crioulo, o Brasil caboclo, o Brasil sertanejo, o Brasil caipira e os Brasis sulinos: gaúchos, matutos e gringos.
O antropólogo se aproxima do sertão num sobrevoo naturalista, apontando a topografia, a distribuição da vegetação, a qualidade das terras e os diferentes cursos d’água que compõem o cenário que se abre a seu engenho de romancista e pintor de paisagens com palavras. Nesse “vastíssimo mediterrâneo de vegetação rala, confinado de um lado pela floresta da costa atlântica, do outro pela floresta amazônica e fechado ao sul por zonas de matas e campinas naturais”, Darcy concentra seu olhar curioso e informado na vegetação, que ganha antropomorfismos naturais, com seus “arbustos enfezados”.
O Brasil sertanejo de Darcy Ribeiro, no entanto, não se compõe apenas de terra, plantas e águas, sendo cenário histórico de várias formas de ocupações econômicas, em diálogo com as circunstâncias da natureza. Descreve as formas de associação e contraste entre a economia pastoril e a produção açucareira, apresenta e civilização do couro, a riqueza da cultura popular, estruturação do poder e modo de crer e brincar. Recorda as inclemências do clima, a miscigenação, as formas de sociabilidade. Não esquece o destino de criatórios de gente, que abandonam a região nas secas para formar contingentes de mão de obra barata em outras regiões do país.
O cientista social e escritor também usa de sua experiência política para explicar a indústria da seca, “facilmente simulável numa enorme área de baixa pluviosidade natural, quando para isso se associam os políticos que dessa forma encontram modos d servir sua clientela, os negociantes e empreiteiros de obras que passam a viver e a enriquecer da aplicação de fundos públicos de socorro.”
O Brasil sertanejo se mostra ainda diverso em suas vastidões, com diferentes arranjos de poder, exploração econômica variada, tipos de gado, extração mineral e comércios. Aflora uma religiosidade singela, “tendente ao messianismo fanático”, formas anômicas de conduta e histórias sempre presentes de banditismo, violência e cangaço. Um território de despotismo latifundiário e de ações de resistência das ligas camponesas. Uma região que vê chegar a mecanização da lavoura e a correção do solo como instrumento de mais concentração e exclusão de seus benefícios para a massa humana do sertão.
O sertão de Darcy Ribeiro é tão real quanto violento. Em seu romance O mulo, estamos distantes de qualquer amenização do destino de uma região forjada por gente capaz de abrir fronteiras, cercar terras alheias e ser dono de gado e gente. O homem desbravador do sertão mineiro e goiano não conheceu outro destino. Há uma homologia entre o poder material e a opressão psicológica. Desmando e violência. O senhor tolere, lembraria Rosa, isso é o sertão.
O que faz o sertão ser tão? Essa talvez seja a pergunta que mais atormente quem um dia se reconheceu sertanejo. Não por ter nascido na pátria física, mas por carregar um sentimento pessoal, uma certeza de origem. O sertão tem suas exigências de filiação e assentimento, um passaporte moral.
Os sertanejos, de Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna e Elomar, têm um sentido peculiar de absoluto. Não se trata de carregar superioridade ou crença de mais valor. Há uma seriedade em seus desígnios, uma carga metafísica de responsabilidade com a vida em cada um de seus momentos. Para o homem do sertão, o universal se realiza a cada segundo, nas coisas mais comezinhas.
São atitudes bem medidas que confirmam o destino sertanejo. O sentimento trágico da existência, o humor puro do amarelinho, a musicalidade que busca uma nota que não existe, sempre acima da melodia. Há algo que não se escuta na música do sertão. A religiosidade sem intermediários e incapaz de ser derrotada pelo teste da realidade: cada seca é a confirmação da graça de um Deus que tem o dom, na hora exata, de mandar a chuva necessária.
As artes do sertão se parecem, ao seu feitio sublime e singelo, uma recuperação em outra escala, do livro do Genesis. São muitas coisas a serem feitas, muita belezas a se figurar, uma pletora imensa de maravilhas para dar à luz. No entanto os dias são poucos, os detalhes não podem aspirar a exatidão, outras tarefas já aguardam o regime do sol e da lua. O artista faz um mundo com o barro. Como Deus fez com sua mais perfeita criação.
Quem chegou a uma casa na região e foi recebido com hospitalidade sabe o que isso significa. Nosso tempo, com sua vocação para classificar e diferenciar tudo, elegeu a tolerância como virtude suprema. No entanto a tolerância, muitas vezes, é autoritária e hierárquica. Ele diz: eu te aceito, com seus erros. O que me torna ainda melhor e ao outro ainda mais devedor. A hospitalidade tem outra medida: somos todos um, mas nunca somos o mesmo.
Parido numa civilização da desigualdade e violência, o sertanejo precisou inventar uma metafisica da igualdade do mais que humano em nós. Por isso os jagunços de Rosa falam como personagens de Dostoievsky e Dante.
O que faz o sertão ser tão é talvez a ausência de mediação. O ir direto às coisas mesmas. O sertão é uma das formas do ser, um caminho que a filosofia perdeu em algum momento, que a ciência buscou recuperar com suas certezas substituíveis a cada geração e que fulgura para alegrar a existência na verdadeira poesia, que por vezes nos visita para lembrar nossa origem comum.
O sertão é essa poesia. Sertão. Ser tão. Ser.
Imagem em destaque: Hugo Messina
*João Paulo Cunha é jornalista, filósofo, colaborador do jornal Brasil de Fato e autor de O Cantador do Rio Gavião, que integra a publicação Elomar – Cancioneiro.