O sertão é uma espera enorme

Nasci no sertão e tenho orgulho de falar:
Sou um caboclo sertanejo e gosto muito de rimar.
Levanto de madrugada, antes do dia clarear,
Pra ouvir o canto dos passarinho e o grito do lobo-guará.
Ainda eu quero ler estas palavras na Revista do Manzuá.
Jau

“O sertão é uma espera enorme”. Essa frase de Guimarães Rosa no romance Grande sertão: veredas expressa uma espécie de condição valiosa do homem dos Gerais. Mas podemos ousar expandi-la por outras geografias, porque a espera é, também, parte constitutiva da história e da personalidade de tantos povos.

Existe espera na volta dos filhos e filhas que saem para os estudos ou para buscar emprego, uma vez que as escolas de ensino médio e as universidades estão concentrados nas grandes cidades; existe a espera pelos maridos, que viajam para os meses de trabalho nas colheitas de monoculturas em outras regiões; existe a espera dos partos, cercados de rezas para serem bem sucedidos, antes feitos pelas mães e tias – experientes parteiras – e que hoje em dia acontecem frequentemente nos hospitais das cidades mais próximas. Há espera na morte, acompanhada dos cantos de incelença e encomendações de almas para enfrentarem seu longo trajeto até o céu.

E existe a espera das chuvas, na experiência potente que marca o tempo e renova a pertinência da fé, faz crescer a relação entre os seres viventes, homens, bichos, plantas, todos dependentes da mesma água para a sobrevivência.

“Final de setembro dá as chuvinha das flô… Mesmo só pra recuperar os pequizeiros, os cajueiros. Pra poder vingar, né? Agora, outubro também costuma chover um pouquinho, mas pra pegar firme mesmo é novembro. Novembro, dezembro, janeiro. Até fevereiro, março, chove. Agora tá… já era pra ter dado uma chuvada, porque os pequizeiros, os cajueiros tão muito florados já. E esse cajuzinho do cerrado, se não chover, não der uma chuvada nele, ele vinga pôquim.”
(Jacinto Pereira de Souza, conhecido como Jau, morador da comunidade da Estiva e guia do Parque Nacional Grande Sertão Veredas)

Jacinto, conhecido como Jau, conhece bem a natureza, gosta de jorgar verso e é guia no Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Foto: Kika Antunes

O ciclo das chuvas

É na espera das chuvas que se mede o tempo e as estações, muitas vezes de acordo com as datas e meses que coincidem com dias de santos milagreiros. Para as previsões, os sertanejos observam o comportamento de pássaros, insetos, árvores, as cores do céu, o desenho das nuvens, os sons, os cheiros. A natureza oferece muitos sinais para ajudar o homem a viver essa espera.

Onde não havia eletricidade para acompanhar os informes meteorológicos, os métodos para saber a época de plantio, evitando queimar as sementes pela secura da terra, eram baseados no conhecimento recebido dos mais velhos a partir de sua relação com a natureza. Hoje, a televisão e a internet até trazem informações, mas muitos moradores dizem que não confiam porque às vezes são anunciadas chuvas mas elas passam longe…

Sebastião Magalhães Carneiro, veredeiro de 61 anos, morador da Vereda da Cruz, no Vale do Peruaçu, descreve a passagem do ano e o ciclo das águas marcados pelos dias dos santos: “antigamente a gente plantava as roças era depois de São Miguel, 29 de setembro. São Miguel, até São Francisco a gente plantava. Se faltasse a chuva um pouco, mais pra Todos os Santos, Finados ela vinha de novo. Aí ia salvando as lavouras. São José é o tempo já da chuva quase indo embora. Que São José é 19 de março. Então é quando a lua muda prum lado e o sol pro outro, dá previsão de chuva. E dia de São Miguel é o tempo que ela volta pro lado dela e o sol pro lado dele. Aí dá previsão de novo”.

No quintal de Sebastião está a Vereda da Cruz. A esperança é de que as chuvas a recuperem da grande estiagem. Foto: Marcela Bertelli

Nas quinquilhas da natureza

Mas se as datas de santos marcam os grandes ciclos ao longo do ano, é “nas quinquilhas da natureza”* que a espera das chuvas pode ser vivida no cotidiano miúdo dos dias. É observando o comportamento dos animais, insetos e aves, plantas, os efeitos da lua e do sol, que o sertanejo encontra os sinais que indicam o momento certo de lançar as sementes, de dar manutenção nos telhados, ou ainda de rezar pedindo que o sol não seja inclemente.

Jau conta que na comunidade da Estiva, vizinha ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas, “a gente tem umas experiências sobre as flores do cerrado, mesmo os pássaros, e tem um insetozinho que eles mijam muito nas flor, no outro dia amanhece tudo molhado debaixo. A gente já tem uma noção, por aquilo, que a chuva vem sempre mais cedo, né? A gente trata de ‘mijador’, ele fica na flor do pau lá, cê vê no outro dia amanhece molhado embaixo. É sinal que chove logo, não demora”.

“O ano também que tem muito buriti, aí chove bastante também. Às vezes na fruta dele, aí chove muito.” Pergunto a Jau: “e que mês que é de fruta de buriti?”. Ele responde que é em novembro, dezembro que “tá pondo os cachos”. Mas diz que o buriti demora, não é todo ano que põe cacho. “Ele demora três, quatro águas pra poder ficar maduro o fruto. Vamos supor, se ele pôs o cacho agora em novembro de 2020, novembro de 2021, novembro de 2022 que ele vai ficar bom. É…. demora!”.

Na comunidade Olhos d´Água, no Vale do Peruaçu, Sérgio Nunes da Mota, com seus 102 anos, comenta que antes das águas entram muitos besouros e mariposas em casa: “mas é do correr do tempo das águas, de outubro em diante. Aí, agora, quando dá de dezembro em diante, eles (os insetos) já vão diminuindo. Mas, porque o tempo da produção, a mesma coisa a lagarta. Nas roças, nos campos, é agora nesse tempo do broto, na hora que aqueles brotos vêm, e os besouros vão desaparecendo tudo.” Sérgio sabe que os insetos aparecem antes das chuvas, morrem enquanto as águas ajudam a fazer crescer os primeiros brotos das plantas, atraindo as lagartas que nascem justamente dos ovos daquelas mesmas mariposas que ele viu entrarem em casa. É o ciclo da vida.

Além dos insetos, são muitos os pássaros que “dão aviso de chuva”. O João Tolo, ou João Bobo, é dos que fazem muito barulho. “Quando eles começam a cantar, pode saber que a chuva tá próxima. Faz um barulho terrível cantando. Quando cê vê ele cantando bastante, assim, pode saber que tá chegando a chuva”, comenta Jau, que também cita o Peixe Frito, pássaro que canta quando a chuva já está bem próxima.

Há outras aves maiores que mudam de comportamento. “Tem aquelas curicacas, tem a garça também. Quando cê vê, elas estão saindo mais pra fora, pro cerrado, é sinal que a chuva vai mais cedo, né? Sempre elas voam muito. As curicacas, elas cantam bastante, voam tudo dentro daquele buritizal, faz aquele maior barulho. As curicacas sempre têm essa noção da chuva. Sempre têm.” Além desses que Jau cita, ele diz que “tem vários tipos de bicho que dá sinal.” 

João e Jorgelina moram na Vereda da Cruz, próxima ao Parque Estadual Veredas do Peruaçu. Eles contam que são os passarinhos os bichos que mais ajudam a anunciar as chuvas: “a sabiá e a zabelê começam a cantar, a gente já acredita mesmo que já vai cair chuva, já sabe mesmo que vai chover. Aqui mesmo, quando a sabiá canta, passa dois, três dias, chove. Cai a chuva. A Zabelê assobia mais é de noite”. E continua listando os pássaros: “tem um grandão, que eles falam – o curió, né? Que é o curiozão, bem pretão. Parece um passo-preto. É bem grande! Ele faz: tchó, tchó, tchó… É o sinal de chuva também! É o sinal de chuva”, comenta João. E Jorgelina, sentada junto do marido, completa: “Esse aí é o nêgo galego”. João então conta que quando a galinha d´água, que vive em seu terreiro e é pequenininha, começa a cantar “com uns três dias a chuva vem.”

João e Jorgelina na porta de casa, na vereda. Foto: Marcela Bertelli

Além dos cantos dos pássaros, Jau comenta que existem outras espécies de animais que também chamam a chuva: “às vezes, até os próprios animais mesmo, quando eles começam a entrar na água, tá tomando banho, cê sabe também que a chuva tá próxima, né? Tá aproximando chuva eles entram na água, eles mesmos banham por si mesmos. Quando cê vê assim, eles tomando banho por si mesmos, tá chegando a chuva. É. Por eles mesmo, né? Eles entram na água e ficam tomando banho. Eles deitam na água, se rola. Aí cê sabe que a chuva tá próxima, não tá longe. Mas é o animal mesmo. O cavalo doméstico, né? E outros tipos de bicho também. Tem anta mesmo, elas banham muito, chegam na água no tempo do calor. Às vezes cê vê que elas tão naquele movimento, naquela descida de água, pode saber que a chuva tá próxima”.

João lembra das rãs que “no dizer dos mais velhos, ‘rapam a cuia’, karrap, karrap, karrap, né? É assim que o meu pai falava. Diz que tá perto a chuva. E, de fato, é isso mesmo! Porque cê pode assuntar. Quando é no tempo que vai ter a chuva, que estiver prestes a chover, você vê ela batendo dum lado, em cima da casa, ela fica puxando, puxando, puxando e logo logo chove.”

Olhos no céu

Sebastião tem, de seu quintal, a vista de um amplo céu sertanejo. E é também olhando pro alto que ele diz que se pode ver os sinais da chuva que vem. A “Lagoa d´água” é um aro em volta da lua, visível aos olhos, que indica o tempo das águas: “fica ao redor, assim. E quando é na Nova. Se ela vem pendida prum lado, já derramô. E se vim pro outro é que ainda não derramô. Aí, logo logo vem”. Sebastião me explica que quando já derramou é porque já choveu mais longe. “É porque ela pode chover em outro canto e não chove no lugar da gente, né?”.

João também comenta sobre a “Lagoa d´água” e da relação da lua e do sol: “é que a lua é o seguinte: ela fica em volta, parece que um círculo, né? Fica aquele circão bem grande nela. Ó, isso aí é sinal de chuva. Quando não é sinal de chuva, é sol. Quando não vem a chuva, vem o sol. Aí o sol monta em cima, não é? O sol bate em cima mesmo. Agora, quando eles falam, quando o sinal é mais escuro, é chuva. Quando ele é bem claro, é sol”.

Jorgelina diz que a gente enxerga bem o aro é na lua cheia. E João dá a explicação: “quando ela tá bem altona, que ela tá empinada aqui, aí você vê o sinal dela, aquela rodona da chuva”.

A natureza tem muita experiência

Edson, filho de João e de Jorgelina, diz que não entende os cantos dos pássaros, se estão chamando chuva ou não. Ele morou 14 anos em São Paulo e retornou para ter melhor qualidade de vida e poder criar a filha perto da natureza. Mas gosta de ouvir as histórias e tem na memória a presença de seus avós e bisavós. Comenta que o bisavô tinha o dom de marcar o tempo. “Pelo tempo ele marcava assim: na nevoação da semana. Essa semana do mês de junho, ele via uma nevoação diferente, daí nublava tudo assim, ele falava: ‘ó, tal dia do mês chove’. E já jogava pra novembro, dezembro… Ele sabia. É só eles que sabiam mesmo. Meu avô sabia, o bisavô meu. Eles sabiam tudo. Agora a gente mesmo….”. E João completa dizendo: “é o Tatuapu, é índio”, mostrando que a família tem origem no povo indígena da região.

Pergunto aos sertanejos se, mesmo olhando pro céu e não vendo nuvem nenhuma, como os bichos ficam sabendo que a chuva está próxima. A explicação é simples. Jau diz que “eles adivinham muito, a natureza tem muita experiência”.

Ele conta que, além de dar sinal de chuva, tem ave que indica a posição dos temporais e dos ventos mais intensos, como o João-de-barro ou Joaninha-de-barro, que constrói a porta da casa virada para o lado contrário das chuvas fortes, indicando com isso se para o ano as águas serão mais ou menos intensas. “Vamos supor que esteja a boquinha pra um lado que, às vez naquele ano que a chuva vem mais daquela direção, né? Ou se eles viram pra cá é porque a chuva vai vir mais, esse ano, de cá. O formato da chuva com o vento, vai vir mais do lado de cá. Eles viram a boca pro entrar do sol. Eles têm essa experiência com eles”.

Edgar Xakriabá conta que o Pajé Vicente Xakriabá, de sua aldeia, diz que “o campo – a natureza – é movimentado de ciência. Os bichos, as plantas, tudo é movimentado de ciência”. 

Uma ciência cada dia menos conhecida das gerações atuais, e quase nunca reconhecida pelas escolas e universidades, mesmo as que recebem alunos advindos do sertão. Mas é inegável que é um recurso para homens e mulheres, oferecendo os sinais de que precisam para serem sustentados em sua relação existencial e misteriosa com sua própria terra. Também é o Pajé Vicente Xakriabá que explica essa relação: “o céu respira a terra”.

Quando a chuva não evém

Mas a ciência encontrada na natureza oferece um diálogo constante, em que a imprecisão faz parte dessa dinâmica de observação e relacionamento íntimo entre as pessoas e os demais seres vivos. Que a chuva caia dali a dois, três dias, ou dali a uma semana, quinze dias, não invalida o aviso sonoro do pássaros. Nada é exato, porque é também misterioso.

Ao mesmo tempo, é justamente por observar a natureza em seus sinais que os sertanejos dizem que “as previsões estão tudo ao contrário”, como diz Sérgio, com a visão de quem muito já viu o sertão mudar. Sebastião também comenta a mudança nos ciclos das chuvas: “antigamente era como eu falei. Agora, não tá tendo isso mais. Agora não tem jeito! Chega São Miguel, chega São Francisco, chega Dia de Finados, Todos os Santos, nada de chuva… tem vez que começa em janeiro, tem vez que já em janeiro não chove nada… A gente não fica sabendo nem a previsão certa da gente plantar. Planta só arriscado.”

João diz “mesmo a internet erra também. O cara fala no rádio: ‘ô, vai vir uma temporada de chuva’. Passa aquele tempo de limpo, num chove nada, né? Já os mais velhos dos mais velhos, era profecia que eles falavam. Que eles olhavam no tempo, vamos supor assim, dava que a chuva não tava muito longe, ele olhava, ele via: ‘ó, tal dia vai chover’. Mas agora não tá mais assim. Pra gente gravar tudo na cabeça é difícil. É difícil porque é tanta coisa! Nossa Senhora! A gente olha no tempo aí, é tanta coisa que parece, que cê pensa que é sinal de chuva e tem vez que não é. Porque agora a gente não tá mais quase nem entendendo, porque os anos estão mudando muito, as coisas vão mudando”.

Mas perguntado sobre como fazer quando a chuva não vem, quando o sol segue inclemente, Sebastião com sua sabedoria sertaneja responde: “a gente reza e pede pra Deus abençoar que venha umas nuvenzinhas pruma chuva e pra chover. É pedir pra Todos os Santos que é o maior”.

“E então a chuva vem?”, pergunto. “É quando Deus quiser mandar, mas que tem certeza, ah, tem! É só firmar com Deus”.

Edgar Xakriabá diz que quando o período da seca se alonga e a chuva não dá sinal, na aldeia acontece a novena, que é uma sequência de dias de caminhada entoando preces. Quem participa carrega cabaças ou vasilhas com água para molhar o cruzeiro localizado onde estão enterrados os antepassados da comunidade. “Eu vou molhar o cruzeiro com todo coração pra Deus mandar chuva e molhar a plantação”, entoam as vozes. Ele conta que é preciso ter muitas crianças no ritual de caminhar e molhar o cruzeiro, pois é a presença delas que ajuda a fortalecer a tradição e chegar aos ouvidos Daquele que benze o chão com a dádiva das águas. “No final, sempre dá certo de chover”, diz Edgar. As imagens das chuvas que estão no ensaio fotográfico feito por ele para a Manzuá comprovam isso, pois foram feitas logo nos dias seguintes à novena.

O ciclo das chuvas, com suas imprecisões, é também o teste de pertinência da fé. Uma fé incapaz de ser derrubada pelo período de seca que revela a vitória de um Deus que não abandona seus filhos. Esse mesmo Deus é quem – em forma de pássaro, de bicho, de planta, de nuvem e de amorosa paciência – envia os sinais para se viver na espera das águas e para confirmar o mesmo ciclo, quando o chão é, enfim, irrigado pelas bênçãos do céu.

Uma espera que nunca é abandono.

* Expressão contida no livro Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.

Enquanto isso em BH

“Chuuuuuuuva. Teve uns lugar aí não sei pra onde, que choveu muito. Diz que choveu muito, matou gente e derrubou poste, derrubou casa. Também, nessas cidades tem até razão, porque os corredorzim tão tudo apertado, qualquer enxurrada, enche d’água né? Não tem pra onde a água espaiá, tem que encher mesmo, e o que topa na frente derruba. Agora, um lugar como esse aqui que a água espalha aí no mundo, nunca enche pra mó de derrubar nada não. Mas essas cidades… eu vejo ali em Belo Horizonte aqueles corredorzim tudo apertado, aquelas casa lá dependurada lá na serra. Cê é doido…”

Sérgio Nunes

Imagem em destaque: Edgar Xakriabá


* Marcela Bertelli é antropóloga, produtora cultural, cantora, editora da Manzuá e diretora da Lira Cultura

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