Ofício de cuidar

Em grotões de todo o Brasil, a medicina popular resiste nas mãos das mulheres

“Chazinho de erva cidreira, de hortelão, folhinha de pau-terrão do cerrado. É lindo de bom”. A receita de Dona Pedra era para a Ju, uma das integrantes de nossa equipe que sofria com dor de barriga quando chegamos no Ribeirão de Areia. Dona Pedra vive há mais de 70 anos na comunidade localizada a cerca de 30 km da sede do município de Chapada Gaúcha, onde é referência nos cuidados relacionados à saúde e à cura. “De primeira, os remédios eram aqui da roça, remédio de roça. Nós num ia em médico, não, minha fia, porque as coisas eram difíceis, né. Aqui era cidade de Januária e Arinos, que tinha médico. E era assim, meio difícil, não tinha muito transporte”, ela relembra. “Eram os chás mesmo que curavam, aqui da roça, né. Fazia os chás das ervas, pra dar às crianças pra tomar. E era bom, o chá era especial de bom. Chá de hortelão, de poejo, de manjericão”.

Esse conjunto de cuidados, que envolvem remédios caseiros, chás, orações e benzimentos, está no campo da chamada medicina popular, que por muito tempo foi a alternativa de sobrevivência de comunidades distantes dos centros urbanos. Repassados ao longo de gerações, os conhecimentos e práticas da medicina popular têm raízes na organização coletiva associada ao cuidado comunitário e à prevenção de doenças. “É muito solidário o atendimento. Tem essa riqueza de abranger rezas, benzimentos, conversas”, explica a farmacêutica Lourdes Cardozo Laureano, coordenadora técnica da Articulação Pacari, que reúne organizações comunitárias de medicina tradicional no Cerrado. “Quem pratica a medicina popular tem um conhecimento muito grande sobre o perfil epidemiológico local. Sabe que o bairro tem problema com a água, com a incidência de alguma doença”. 

Dona Pedra não reivindica para si nenhuma identidade específica, mas pode ser reconhecida como “raizeira”, como é chamada a pessoa que manipula ervas e outros componentes naturais para cuidar da saúde da comunidade. “Às vezes, em uma região, a pessoa é conhecida como aprendiz de raizeira, ou ela faz chá, ou ela é uma curandeira”. Lourdes comenta que a identidade social de raizeira está sendo fortalecida para incidir sobre as políticas públicas, principalmente a Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. “Assim como a quebradeira de coco firmou-se como identidade social, mas nem sempre ela é só quebradeira de coco, ela tem outros ofícios tradicionais”. É muito comum que essas identidades se sobreponham nas comunidades. “Uma mulher pode ser agricultora e raizeira, quilombola e raizeira, parteira e raizeira. Toda parteira é raizeira, o ato de usar plantas no parto é uma tradição”, ela acrescenta. 

“Eu faço uns benzimentinho, aí”, conta, rindo, Dona Pedra, que benze de quebrante, de dor de barriga e dor de dente. “Aprendi com a minha mãe, e mais foi com a minha vó, que era benzedeira e parteira muito boa. A parteira que tinha aqui nessa região de primeira era ela”. Dona Pedra conta que sua avó foi “mãe de pegação” de grande parte dos 10 filhos que teve – todos partos feitos na roça. As duas caçulas de Pedra nasceram com o auxílio de Dona Antoninha, ou Antoninha Véia, como é chamada na comunidade. “A Véia Antoninha mesmo, benze de um monte de benzimento. Ela é parteira e ela benze. E boa parteira, ela. Sabe tanta reza de cor, ela mais o marido dela. Ô, povo bom pra rezar. Tudo quanto é bendito”, ela relata.

Com 87 anos, Antoninha Véia ainda sabe benzimentos de cor. Para o quebrante, por exemplo: “Se a pessoa chama Maria, aí você fala assim: ‘Maria, se a mãe que te pariu há de te criar, quebrante que oiado que eu te botei, eu hei de tirar’. Aí reza uma ave Maria e uma Santa Maria”. Ela conta que não faz mais partos, porque as mulheres da região já têm os meninos e meninas na cidade. “Graças a Deus. É duro, não é bom não. Porque você sair da sua cama… Cê tá dormindo, de noite, tem vez com chuva, minha fia. Tem que ir, né, porque como é que a gente fazia…”, relembra. Mas até hoje é benzedeira procurada na comunidade. “Quando eu vou numa festa, é um trabalho. É ‘benze meu menino’. Aí vem a outra: ‘ô, benze meu menino’. Elas não deixa eu sossegada, não”.


Dona Pedra, rezadeira e dançadeira da comunidade de Ribeirão de Areia. Foto: Maria Ribeiro

Próximo ao Ribeirão de Areia está Sagarana, distrito de Arinos. Em 2009, a equipe do Cresertão (Centro de Referência em Tecnologias Sociais do Sertão) criou ali um grupo de base composto por mulheres, para proporcionar trocas de saberes e fazeres. A proposta era realizar reuniões comunitárias itinerantes nas casas das mulheres do distrito, em que a anfitriã sempre apresentava o que considerava que sabia fazer muito bem. “O tema ‘saúde’ foi apontado como uma preocupação, devido à ausência de atendimento médico, ao alto custo de remédios e ao encerramento das atividades da Pastoral da Criança”, relembra Andréa de Cássia Alves Silva, presidenta da Associação do Cresertão. “Isso proporcionou trocas de saberes sobre as plantas medicinais que cada uma utilizava há gerações”.

Assim nasceu o projeto “Ser Tão Raiz – Espécies, Pessoas e Cerrado”, que hoje busca difundir os saberes relacionados à cura no Vale do rio Urucuia com a finalidade de organizar e articular em rede os ofícios de raizeiras, benzedeiras e artesãs da região. “São mulheres e homens filhos da tradição, que encontram soluções realizando e perpetuando o conhecimento tradicional de seus povos utilizando espécies medicinais nativas como medicina preventiva, terapêutica, de cura e também de complementação alimentar”, explica Andréa. A proposta é buscar e registrar práticas de medicina popular nas comunidades de Morrinhos, Igrejinha e no Ribeirão de Areia, além de Sagarana. Ao fim da jornada, será construída uma Unidade Coletiva Referencial no Cresertão, com infraestrutura de uma farmacinha comunitária. 

Como lembra Lourdes, a riqueza da prática da medicina popular nos Gerais está intrinsecamente relacionada ao uso sustentável dos recursos do Cerrado. Biodiversidade e conhecimento são palavras-chave para esse campo do saber-fazer. “Em cada ecossistema, há uma relação socioambiental e cultural ancestral que os povos têm com os seus recursos. Para exercer seu trabalho, uma raizeira tem uma relação muito forte com a preservação, a conservação e até a restauração do ambiente”, ela pontua. Andréa relaciona essa simbiose ao conceito de “direitos consuetudinários”, descritos no Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado como “direitos fundamentados na tradição e expressos por valores, princípios, regras, cosmovisões e práticas passados de geração em geração, num movimento vivo e contínuo”. Dessa forma, o uso sustentável da biodiversidade do Cerrado para a saúde comunitária pode ser entendido como um direito das comunidades, que deve ser protegido e garantido.  

Dona Antonina, parteira e rezadeira da comunidade de Ribeirão de Areia. Foto: Maria Ribeiro

Não é fortuita a escolha de empregar os termos no feminino (“raizeira”, “benzedeira”, “rezadeira”) nesse universo da medicina popular. O saber relacionado a esse campo é primordialmente exercido por mulheres – passado de avós e mães para filhas e netas. Lourdes explica que a opção pela alternância de gênero é uma forma de reconhecer esse protagonismo feminino nos ofícios do cuidar: “Não quer dizer que os homens não sejam capazes de fazer isso. Quando a gente fala ‘raizeiras’, está incluído o homem. A gente inverteu, em função de um posicionamento”. 

O público com quem Andréa trabalha no Ser Tão Raiz é composto, em sua maioria, por mães de família e donas de casa: “campesinas, agricultoras familiares, mulheres de lida, sertanistas”, ela descreve. “Mas temos a participação de vários homens que desenvolveram habilidades no reconhecimento de ervas e raízes do Cerrado que utilizam para a cura de pessoas e animais. São os chamados mateiros”. Grande parte dos depoimentos desses homens revela que aprenderam o ofício com suas mães. Vez ou outra, a figura paterna aparece.

O protagonismo não se restringe ao âmbito privado ou familiar. Lourdes descreve as farmacinhas caseiras e comunitárias, comuns no contexto da medicina popular, como espaços de encontro, troca e empoderamento feminino. “A raizeira não é aquela que fica no seu cantinho fazendo seu remédio. Elas também vão ao mato, coletam, identificam as plantas, vão para espaços políticos de resistência. Elas tomam a iniciativa de fazer intercâmbio, dar oficina, ensinar nas escolas. Isso estabelece uma relação com a professora, com as outras mães”, explica. 

O fundamental aqui, e que parece ter algo de feminino em sua essência mais palpável, é o reconhecimento do cuidado e da cura como um dom. “Tem uma citação que eu gosto que é assim: ‘a necessidade do povo me dá coragem de ser raizeira’. De cuidar da saúde do povo. Se o homem, frente à necessidade, também têm a reação de cuidar da saúde, ele está exercendo o dom de ser raizeiro”, Lourdes afirma. 

Perguntada sobre a eficiência dos benzimentos para curar dor de dente, Dona Pedra responde com um aforismo matuto: “Precisa ter fé, né, minha fia. Diz que onde não tem fé, não tem milagre”. Com ou sem milagre, raizeiras como ela vêm cuidando de crianças e adultos há décadas, e se configuram como importantes agentes de saúde comunitária com pouco ou nenhum reconhecimento oficial. A associação à crendice ou à ignorância, que menospreza e desconhece o saber ancestral e seus atravessamentos entre a fé e a cura, é uma das dificuldades no diálogo com a medicina convencional. “Às vezes acontece o diálogo em iniciativas locais. Um médico da saúde da família, por exemplo, que reconhece que aquele xarope de angico é muito bom. Mas no geral, a medicina convencional desconhece a medicina popular”, reitera Lourdes. 

Não são raros os casos em que raizeiras e parteiras preferem se recolher, com medo da criminalização. “Onde chega uma atenção oficial do governo, as parteiras são proibidas de exercer seu ofício. Em muitas comunidades, elas falam: ‘se precisar, eu faço’. Em cantos muito distantes onde não tem hospital, não tem médico, elas continuam a exercer”, ela explica. “Mas com muito cuidado, porque elas podem ser criminalizadas”. Há aí um desperdício do potencial da medicina popular, que poderia complementar desde as práticas das equipes de saúde da família até a realização de partos.

Além da criminalização pela medicina oficial, há ainda a discriminação relacionada ao avanço das igrejas neopentecostais – muitas vezes ignorantes em relação às práticas dos cuidados tradicionais. “Ao iniciarmos efetivamente as mobilizações e diagnósticos das raizeiras, benzedeiras e artesãs, nos surpreendemos com o grande número de pessoas que utilizam remédios caseiros. Mas surpresa maior foi o cuidado das benzedeiras em não querer se identificar – um processo que vem ocorrendo fortemente devido ao crescimento das igrejas evangélicas”, conta Andréa, em relação ao processo que viveu no Ser Tão Raiz. “A cura realizada pelas orações e rituais tradicionais passa a ser vista como um processo de curandeirismo, mesmo tendo como base o cristianismo e a oração”.

Contra o desconhecimento e a discriminação, há um esforço recente em pautar a prática dos cuidados relacionados à medicina popular no cenário das políticas públicas nacionais. Um dos caminhos propostos pela Articulação Pacari é a luta para registrar o ofício de raizeira como patrimônio imaterial do Brasil. Para além da mera visibilidade, Lourdes explica que o reconhecimento político pode levar a atividade a ser uma possibilidade de geração de renda para as famílias. “Um desafio grande que todos esses ofícios têm é o interesse dos jovens. É a mesma lógica da agricultura familiar, das quebradeiras de coco. É por não ter oportunidade de ficar na roça, que eles vão pra outros cantos”. Motivar o envolvimento da juventude nas comunidades, por meio de alternativas reais de geração de renda, é fundamental para garantir a salvaguarda do saber popular.

Imagem em destaque: Maria Ribeiro


*Carol Abreu é jornalista, educadora e integrante da banda Djalma não entende de política.

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