“Agrofloresta é você fazer a plantação dos seus mantimentos dentro das plantas que tem. Lá tem um pé de manga, aqui um pé de figo, aqui é amora, ali jacarandá mimoso, lá adiante tem caju, tem cajá manga, umbu cajá, caqui, cacau. Tudo aqui tá plantado. Lá vem um pé de moringa, aí vem o pé de laranja, aqui um pé de angico e aí segue por diante. Sai aqui desse pé de jacarandá mimoso, pega o pé de pau-ferro e vai embora, olha lá, ó.”
José Aparecido de Macedo, Zé Torino
No Gerais, muitos agricultores aproveitam os frutos do Cerrado para a produção de alimentos e manutenção da renda familiar. Organizados em cooperativas, extrativistas têm encontrado, na própria mata nativa do Cerrado e em espaços de pomares com manejo sustentável, a forma do desenvolvimento econômico, da preservação ambiental e da manutenção de sua rica cultura alimentar.
O pequi é um desses frutos que vêm ganhando espaço nos mercados de outras regiões do Brasil e até de outros países. A fruta é comercializada em polpa, óleo, farinha, doces, castanhas, licores e também in natura. Dos muitos jeitos de se consumir, a culinária é vastíssima: do universal arroz de pequi aos acompanhamentos diversos como pães, farofas, paçoca de carne, costelinha, galinhada, geleias, castanhas cristalizadas, temperos e até sucos e sorvetes.
De acordo com dados recentes da Organização WWF – que atua no fortalecimento da cadeia do agroextravismo na região do Cerrado, “na Cooperativa dos Agricultores Familiares e Agroextrativistas do Vale do Peruaçu (CooPeruaçu), a última safra (2016/2017) do pequi, com produção entre dezembro a fevereiro, originou cerca de duas toneladas e meia de polpa, que foram comercializadas regionalmente em Januária e Montes Claros, como também nacionalmente. É o exemplo de Belo Horizonte, Brasília e São Paulo, por meio da Central do Cerrado.” Além do mercado nacional, o pequi tem sido exportado para o Japão em formas diversas, como o creme.
Vicentina Bispo, conhecida como Dona Tina, é uma das muitas mulheres que participam da imensa rede de agricultores, extrativistas e beneficiadores do pequi. Ela “já sabia brigar com as panelas”, como diz, e tinha o desejo de aprender mais, fazer um curso de agroindústria. A distância do Instituto Federal não foi obstáculo: para frequentar as aulas, Tina percorria os cerca de 12 quilômetros diariamente de bicicleta. Hoje se orgulha de ter chegado ao final da formação que lhe abriu novas oportunidades e possibilitou a profissionalização do seu saber. Foi desafiada a criar novos produtos e encantou os professores e colegas com sua capacidade de trabalhar com os frutos da região, como o araticum e o pequi. “Não fiquei só na farofa, aperfeiçoei e criei outros produtos, doces e salgados”, comenta. Sua habilidade com o processamento dos frutos é tal que ela desenvolveu formas de secá-los e preservá-los, utilizar o que antes era descartado, até criou ferramentas para abrir e cortar as partes mais difíceis. Contando sua história, diz que “a gente vai fazendo as coisas sem imaginar a dimensão de onde vai dar.”
Dona Tina explica que é preciso colher o fruto do chão, pois a cata diretamente no pé prejudica a produção das safras seguintes. Ela diz que cada lugar tem seu próprio manejo e que não se pode forçar o pé retirando os frutos antes da hora certa, preocupação que ela tem por causa de atravessadores que querem comercializar o pequi antes do momento adequado.
O arroz com pequi de Dona Tina é famoso na região por causa de um “segredinho”. Aqui ela nos conta a receita!
“O arroz com pequi, o tradicional é colocar o pequi inteiro no arroz. O que eu fiz foi pegar a polpa que eu já usava para fazer a farofa, né? Eu fiz o arroz normal com carne de sol e linguiça e peguei essa polpa e coloquei. Porque aí ela, ao cozinhar o arroz, vai amolecendo também e vai integrando no arroz. Dá essa coloração e esse sabor legal. Tem as pessoas que gostam de comer o pequi mas não gostam de pegá-lo, de roer mesmo. Essa é uma maneira de matar a vontade sem sujar a mão.
Refoga a carne com a linguiça, os temperos todos, torra um pouco o arroz e mistura com essa carne que já foi refogada. É nessa hora que coloca a polpa do pequi, mistura tudo, quando ela começa a mudar um pouco, aí adiciona a água quente e deixa o arroz cozinhar normal. É um arroz simples, porém diferente de muitos que tem por aí. O sabor se intensifica mais se você usar a água que cozinhou a carne – geralmente eu cozinho a carne antes pra ela ficar macia. Essa água você deixa pra colocar no arroz porque entranha o sabor da carne no arroz. A gordura que eu usei aí foi só a gordura do pouquinho da linguiça que eu refoguei. E é isso, só misturar as outras coisas: um pimentão, uma cenourinha, um cheiro verde, alho, sal, pra colorir mais o arroz e incrementar mais esse prato.”
Medidas: “Você pode colocar 300 gramas de polpa para 1 quilo de arroz, porque, se colocar muito, o arroz não fica legal, o sabor do arroz vai sumir. Então você coloca uns 800 gramas de carne e 300 gramas de linguiça, para não sobrepor uma coisa na outra, senão um rouba o sabor do outro. Você colocando uma quantidade razoável, um integra o outro e fica um sabor legal.”
“A maneira mais fácil que você tem pra guardar a polpa é separar da castanha. Se não fizer isso, vai perder o fruto, porque acontece assim: a castanha tem os espinhos, quando eles ficam secos, a polpa fica madura, o fruto cai do pé, a gente colhe pra ser consumido. Aí as pessoas pegam esse fruto, lavam, cozinham e congelam. Com o passar do tempo, os cristais de gelo que formam na polpa ficam bem próximos dos espinhos. Aqueles espinhos que estão sequinhos, com o passar do tempo junto ali com a polpa úmida, vão começar a amolecer e soltar a coloração e o sabor que é amargo para a polpa. Aí a polpa começa a perder a característica, fica amarga, escura, dura, não cozinha de jeito nenhum, porque tudo aquilo ali passou pra massa.
O que você faz? Você pega o fruto, cozinha normal como se fosse pra comer, deixa esfriar, raspa ele pra soltar a polpa, põe no saquinho e congela, dura até 3 anos. Dessa maneira você pode fazer sorvete, o suco também, você coloca menos quantidade e adoça ele, côa ali e adoça pra você ver que delícia que é! Se você bater com o leite, coloca um pouco de maisena e adoça com um pouquinho de canela, fica delicioso também. Essa polpa você pode inventar, pode fazer também na massa pra empada, pão, rosquinhas, bolinho, uma delícia, uma delícia. Na massa de torta, no recheio com os legumes e assa, fica hummm…”
Imagem em destaque: Bento Viana / Arquivo ISPN
* Marcela Bertelli é antropóloga, gestora cultural, membro do grupo Ilumiara de pesquisa e música, diretora da Lira Cultura
** Vicentina Bispo é extrativista de Januária (MG), criadora da marca “Pequitina”, que comercializa produtos derivados do pequi. É precursora do pequi desidratado.