Peruaçu: patrimônio da humanidade, patrimônio do povo

Encravadas ao longo do Vale do rio Peruaçu, montanhas milenares atraem a curiosidade de quem passa neste espaço dos Gerais, entre os municípios de Itacarambi, Januária, São João das Missões, Bonito de Minas, Cônego Marinho e Miravânia. Elas hoje constituem um dos mais valiosos patrimônios espeleológicos e arqueológicos do mundo, com cerca de 140 cavernas e 80 sítios com pinturas rupestres e registros dos diversos povos que habitaram a região. O conjunto faz parte de duas áreas integradas: O Parque Nacional Cavernas do Peruaçu e a APA Cavernas do Peruaçu. Ao nome Peruaçu são dados vários significados, mas, segundo o educador João Xakriabá, a palavra é derivada do Tupi: Peri – (sulco ou buraco formado pelas águas) e Açu (grande), ou seja, grande buraco formado pelas águas.

A beleza e a dimensão impressionam. Várias espécies da fauna e da flora de três importantes biomas – o cerrado, a caatinga e a floresta estacional ou mata seca – convivem em meio às cavernas em pleno semiárido, sendo que 39 espécies animais e 11 vegetais que vivem por ali estão ameaçadas de extinção. Além disso, este é o refúgio da parte subterrânea do Rio Peruaçu, importante afluente do Rio São Francisco.

Como explica Raiane Viana, analista ambiental do ICMBio, “A APA, criada em 1989 com o objetivo de proteger toda a bacia do Rio Peruaçu, compreende uma grande riqueza socioambiental, pois o seu território possui sobreposição com o Parque Estadual Veredas do Peruaçu, com a Terra Indígena Xakriabá, com comunidades quilombolas e com os agricultores familiares e agroextrativistas que compõem a Cooperuaçu”.

Aberto à visitação pública em 2017, o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu representa um dos mais importantes patrimônios ambientais, arqueológicos (pinturas rupestres) e espeleológicos (cavernas) do Brasil – fundamental não só para as comunidades do Vale do Peruaçu, mas para se compreender a formação geológica e humana das Américas. Ele possui cerca de 56 mil hectares (a APA compreende cerca de 143.000 hectares) e, antes de sua abertura para acesso público, só estava acessível a pesquisadores e estudantes que ao longo dos anos cooperaram no estudo e mapeamento da área, além da elaboração do plano de manejo e preparação do Parque para sua abertura.

Pinturas rupestres encontradas no Parque indicam ocupação indígena na região há mais de 10 mil anos. Foto: Tom Alves

Conhecendo o Parque

Entra-se no PARNA Peruaçu pelo distrito de Fabião I, comunidade que oferece serviços turísticos de base comunitária aos visitantes, como hospedagem familiar e refeições baseadas na culinária local. Apesar da quantidade de cavernas e sítios existentes, hoje são oferecidos aos visitantes 8 atrativos, escolhidos por interesse e condicionamento físico dos interessados. Os roteiros possuem estrutura como rampas e passarelas que trazem segurança e acessibilidade, ao mesmo tempo em que garantem proteção ao patrimônio natural e arqueológico, como os cursos de água e os paredões de pinturas rupestres. O Parque continua em permanente adaptação para o turismo, mas é importante considerar que há diversas cavernas habitadas por animais silvestres, inclusive em risco de extinção, além de zonas que devem ser resguardadas à pesquisa e à preservação ambiental e arqueológica.

Guias são formados na comunidade

Todos os guias hoje credenciados para condução dentro do Parque são moradores da região, a maioria profundamente ligada ao território desde que nasceu. Seu Mozart Lima é um dos antigos moradores da Área de Preservação Ambiental – APA Peruaçu, no entorno do Parque, e tem muitas lembranças da região. “Nasci e criei aqui na área da APA. De vez em quando ia pescar lá no Peruaçu quando ele corria. Lá tinha muito peixe: Traíra, Piau. Achava muito bonito, mas quase não entrava nas grutas porque lá tinha onça, feras. O povo não conhecia e não entendia aquilo. Não sabia o que representava. A gente chamava de Lapa de Cinu onde hoje se chama Caverna Janelão. Ele morava lá, é parente meio longe. Vivia lá, era agricultor, plantava roça, criava gado, até morrer ficou lá mesmo”.

A vivência no entorno e a relação com as cavernas têm uma grande importância cultural e histórica. Nos diversos sítios arqueológicos foram encontrados esqueletos e pinturas rupestres que indicam as formas de vida de paleoíndios – assim chamados por representarem a ocupação indígena na região em diferentes períodos históricos que remontam há 12 mil anos. Muito antes de se tornar Parque, as pessoas da comunidade coexistiam com as cavernas e as formas de vida dali. E ainda hoje as comunidades do entorno do Parque têm uma relação cultural e ritualística com as cavernas. Para a etnia Xakriabá, por exemplo, é onde vivem os encantados da floresta.

Joaquim Nepomuceno Filho, conhecido como Kinka, quando criança, mantinha uma relação estreita com o rio que corta as cavernas. “No entorno de onde são as cavernas era o meu quintal. A água que tem lá é só do Peruaçu, então pegava água lá. Eu era adolescente na época, conheci o rio de todas as formas, da enchente à seca, eu nadava lá, brincava. A primeira vez que fui à Gruta do Janelão, em 1983, fui pescar. Eu já tinha me deparado com alguns paredões tão altos, no boqueirão, mas o que chamava a atenção naquele era a meia lua do coração. Acredito que isso que originou o nome, nós não chamávamos aquilo ali de perna da bailarina, lá era o buraco dos macacos, porque tinha muitos bugios; ali tinha muitas frutas para eles. Quando estava com os parentes, gente que vinha lá de fora, de São Paulo, a gente ia mostrar. O que chamava mais a atenção era estar num buraco, numa caverna clara, com vegetação, a mata lá dentro e o rio”. As manifestações religiosas também tinham espaço na área das cavernas. “Na Semana Santa a gente ia às cavernas alimentar os peixes com farelo de milho e na Sexta-Feira Santa nós os comíamos para salvar a alma, como mandavam os mais velhos”, conta Kinka.

Os guias credenciados para a condução dentro do parque são moradores de comunidades e municípios da região. Foto: Rafael Pereira

Peruaçu Patrimônio do Mundo

Com toda essa riqueza, o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu poderá se tornar Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade, o que vem sendo pleiteado junto à UNESCO pelo Conselho Consultivo Cavernas do Peruaçu, composto por mais de 50 entidades governamentais e não governamentais, ambientalistas e representantes comunitários.

Os títulos de Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade podem ser motivo de orgulho para o país, mas para as comunidades do entorno do Peruaçu eles podem ir além. Têm o potencial de contribuir para a garantia da manutenção não apenas das cavernas, mas da biodiversidade e cultura da região, bem como gerar formas das comunidades resistirem no seu entorno. Tudo depende de como o processo e o planejamento para utilização posterior do Parque venham a ser conduzidos, o que demanda um esforço coletivo por um bem comum.

Rafael Pereira Pinto, analista ambiental do Instituto Chico Mendes – ICMBio – é também coordenador de visitação do Parque e vem acompanhando a Campanha Peruaçu Patrimônio da Humanidade. Segundo ele, “já foram feitas visitas que atestam que o Parque atende às características necessárias para receber o título. Foi realizada uma audiência pública em Januária, solicitada pela Assembleia Legislativa de Minas, para divulgar a ideia e atrair apoio para a causa”.

Os passos para a obtenção do registro de Patrimônio da Humanidade junto à UNESCO estão sendo dados. O primeiro é um relatório de candidatura, apresentando as características da área, sua importância biológica e cultural. Esse relatório deve ser apresentado ao Estado Brasileiro, que pode apresentar para a UNESCO apenas uma candidatura por ano. Segundo Rafael, o relatório é um dos principais desafios, por ser um exercício trabalhoso e custoso, que depende de recursos ainda não disponíveis. Para tal, foi criada uma campanha e um Grupo de Trabalho montado pelo Conselho Consultivo, que busca angariar recursos financeiros, mobilizar o poder público e informar as pessoas sobre o processo de titulação.

O longo caminho da gestão compartilhada

No início da criação do Parque, muitos comunitários questionavam sua implantação. Não havia retorno sobre as muitas pesquisas realizadas a partir da década de 80. Ao mesmo tempo, nesse período a região era explorada e os governos investiam em plantação de eucalipto para carvoarias na região. As comunidades viam o Rio Peruaçu diminuir seu curso d´água e o Cerrado ser reduzido, fazendo abalar a confiança nas pesquisas e nas incursões pelas cavernas.

Segundo Kinka, “eles (pesquisadores) nunca faziam uma reunião na comunidade, a gente comentava que estavam arrancando o ouro, mas tem outras coisas, como os fósseis que dizem que estão no museu, eles nunca vieram mostrar ou levaram alguém daqui que tivesse interesse de ver… eles não divulgaram o trabalho que estavam fazendo”. Esse comportamento só contribuía para aumentar a desconfiança da comunidade com relação à implantação do Parque.

A mudança de comportamento na gestão integrada do território que abrange as comunidades e as demais unidades de conservação – como o Parque Estadual Veredas do Peruaçu– vem trazendo nos últimos anos resultados extremamente positivos, tanto para o conhecimento da área quanto para a melhoria da qualidade de vida da população do entorno do Parque. Seu Mozart acompanha a gestão participativa desde o início: “Participei do Plano de Manejo do Parque, em 2002 para 2003. Nas reuniões, aprendemos sobre a importância da mudança de comportamento. Por exemplo, de primeiro tacavam fogo e hoje não colocam mais, porque mata os microrganismos e os incêndios criminosos destroem as veredas e são perigosos. O agroextrativismo também foi pensado pelo Plano de Manejo e depois se tornou renda para nós. Aqui estamos em uma área de recarga, o que a gente preservar aqui reflete lá (dentro do Parque)”.

Raiane Viana se posiciona na mesma linha: “Muito do que aparece do nosso trabalho é apenas o uso público, a visitação. Mas essa é só a ponta do iceberg. A gestão socioambiental, educação ambiental, fiscalização, combate a incêndios, licenciamento, pesquisa… muita coisa é feita para manter as belezas do Peruaçu”. Várias ações de recuperação do rio, de manejo sustentável e agroextrativismo vêm sendo desenvolvidas com as comunidades locais, escolas, prefeituras e municípios. Segundo Raiane, essas ações na área da APA impactam na manutenção da biodiversidade também dentro da área do Parque, uma vez que não é um local isolado, mas parte de todo um bioma.

Outro aspecto é que o turismo sustentável pode ser impulsionado na região, caso sejam obtidos os títulos. Segundo Rafael, a visitação vem impactando diretamente na renda dos moradores das comunidades. “As pessoas já estão abrindo os olhos para a importância de se organizar e gerando renda com isso. Já tem pousadas, restaurantes, receptivos familiares e principalmente muitos guias que são das comunidades locais”, diz Rafael. Ainda, segundo ele, há normas para a condução no parque. O condutor tem que estar credenciado e fazer uma formação específica. A legislação não restringe os guias à comunidade local, mas atualmente todos os credenciados – sendo 45 no total – são moradores da região.

A grandiosidade das cavernas e sítios arqueológicos vem atraindo cada vez mais a curiosidade de visitantes, recebidos pelas comunidades do entorno. Foto: Tom Alves

Kinka é um dos guias mais antigos do Parque. Para ele, que já foi migrante em São Paulo, essa possibilidade profissional foi a realização do sonho de ter uma vida melhor no lugar onde nasceu. “Eu conheço 80% do parque, os outros 20% era meu terreiro. Tudo o que eu adquiri hoje foi lá dentro do parque”. Esse conhecimento, aliado às várias formações de que participou para se profissionalizar, o ajudou a se tornar um dos mais procurados guias para incursões nas cavernas.

Ele e outros companheiros criaram a agência Vale dos Sonhos Ecoturismo. Para Kinka, é preciso maior incentivo do poder público para melhorar as estradas de acesso ao Parque e também a outras áreas turísticas da região, como o Rio Pandeiros. “Às vezes a pessoa vem de longe e quer conhecer as cavernas, mas também quer relaxar em outros lugares. Se tiver estrutura, pode gerar atrativo para nós aqui e para pessoas de outras regiões também”. Desde 2014, o Parque vem passando por reformas e adaptações para promover a acessibilidade.

Desafios diversos se apresentam constantemente. Para Raiane, é preciso intensificar as formações, pois as caçadas de animais silvestres e as queimadas criminosas ainda são uma realidade que ameaça a riqueza natural da região. Ela acredita que a partir de uma maior visibilidade do Parque e de maior envolvimento das comunidades podem surgir incentivos para a manutenção da área. A candidatura ao título de Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade com certeza é decisiva nesse sentido.

Outro desafio é apontado pela população local que reivindica maior acesso ao Parque e ao conhecimento produzido a partir dele: Seu Mozart espera que as escolas e associações possam ter uma relação mais estreita com a visitação do Parque, aumentando o conhecimento dos moradores. Já Kinka acredita que as pesquisas realizadas ao longo do tempo possam contribuir para conter ou sanar os impactos ambientais que a região vem sentindo. “Precisamos do Peruaçu vivo. O título e o turismo são mais formas de preservarmos a natureza, as cavernas e nós mesmos”, conclui.

Dentro do Parque

A Gruta do Janelão é o atrativo mais procurado pelos visitantes. Impressiona sua grandiosidade, com a formação de dolinas que oferecem uma luminosidade especial aos imensos salões com seus espeleotemas de cores diversas. Além disso, a gruta é toda atravessada pelo rio Peruaçu, presenteando a vista dos mais atentos com um belo espelho d´água. Ao final do percurso está a considerada maior estalactite do mundo, a Perna da Bailarina.

Não é apenas o Janelão que impressiona. A Lapa Bonita é considerada uma das mais belas e ornamentadas do Parque, com salões de espeleotemas e o denominado Salão Vermelho, coberto por sedimentos avermelhados. Para conhecer as pinturas rupestres, os roteiros que oferecem mais quantidade e diversidade são a Lapa do Índio, com paredões de pinturas que vão até o teto. No caminho, tem-se uma visão ampla do Parque visto de cima.

Na Lapa do Boquete foram encontrados diversos registros e materiais que atestam a presença humana pré-histórica no Vale do Peruaçu, como sepultamentos, pinturas e um silo utilizado para armazenar alimentos. O caminho para a Lapa dos Desenhos, que margeia o rio Peruaçu, tem como destino um imenso paredão com um dos mais impressionantes conjuntos de pinturas rupestres do Parque. Nele é possível ver os diferentes pigmentos, técnicas aplicadas e estilos da arte rupestre em épocas distintas de ocupação humana.

Para se chegar à Lapa do Rezar é preciso preparo físico para subir os mais de 500 degraus. Mas a vista é recompensada pela grandiosidade, riqueza e beleza reunidas ali. Além do conjunto de arte rupestre, a gruta apresenta toda a exuberância de seus espeleotemas e a grandiosidade do salão de entrada com mais de 40m de altura.

A beleza natural do Parque é atrativo do caminho para a Lapa do Caboclo e do Carlúcio, que possuem mirantes de onde é possível avistar de cima a rica vegetação de mata seca, algumas árvores da caatinga e a dimensão das formações rochosas.

Para visitar o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, é preciso agendar previamente o passeio junto à gestão, que demanda a presença de um dos guias credenciados. Além disso, cada roteiro comporta um número máximo de visitantes por dia, pois é necessário que as áreas se recomponham.

Para agendar a visita: cavernas.peruacu@icmbio.gov.br. Para conhecer os roteiros e acessar a lista de condutores credenciados: http://www.icmbio.gov.br/portal/visitacao1/unidades-abertas-a-visitacao/8642-o-parque-nacional-cavernas-do-peruacu.

Imagem em destaque: Aberto à visitação desde 2017, o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu é procurado nacionalmente por seus espeleotemas. Foto: Hugo Messina


* Myrlene Pereira é psicóloga, comunicadora, educadora popular e feminista. Colaboradora voluntária da Articulação Semiárido Mineiro – ASAMinas e da Cáritas

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