Sertão transbordado
Era 1988 e eu tinha vinte e poucos anos. O ano da nova Constituição Federal, a “constituição cidadã”. Uma conquista. Mas, do alto da minha juventude, parecia apenas um passo à frente do que se assemelhava a um processo de redemocratização do país. Sonhávamos e, para mim, os sonhos tinham formas e contornos. Começavam por Brasília, cidade que me constitui, passavam pela Universidade de Brasília, onde o mundo se abriu para mim, e desaguavam no Cerrado, uma paisagem de surpresas sem fim, das plantas às comunidades, das cachoeiras às chapadas. Tudo era novo, tudo era possibilidade, o infinito se descortinava…
Para dar concretude a esse suposto infinito, havia na UnB projetos de mapeamento da biodiversidade do Cerrado. Talvez uma tentativa de mostrar que mesmo o infinito pudesse ter um fim ou talvez de comprovar que essa savana, com a maior diversidade de árvores do mundo, tinha imenso valor. Certo é que partíamos para lá encarapitados em caminhonetes, com mapas de papel, fichas telefônicas, botas e perneiras, sentindo-nos um pouco Riobaldo, um pouco Barão de Langsdorff¹ e – por que não reconhecer ? – um pouco Indiana Jones². Se por um lado recusávamos já aquela visão colonial de uma terra a ser desbravada, havia um sentimento excitante de conhecer o que era para a maioria – e assim permanece – absolutamente desconhecido. Não era só a paisagem do Cerrado, não eram apenas as serras e chapadas, não eram somente as espécies de plantas, as estradas de terra e os rios, era uma outra forma de estar no mundo, um outro jeito de viver, com o qual nos defrontávamos todos os dias, encontrando pessoas que tinham o sertão entranhado na alma.
Um dos objetivos dessas viagens, como se elas precisassem ter algum objetivo que não fosse apenas nos levar a esses outros mundos, era identificar lugares para a criação de novas unidades de conservação. Entre essas unidades, que foram criadas depois, fruto também de outros estudos, está o Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Vale dizer que o estabelecimento de parques no Brasil sempre me produz uma certa angústia. Se, por um lado, ninguém mais duvida de que essas áreas protegem a vegetação da sanha predatória da nossa própria espécie, por outro, os parques seguem um modelo que eu chamaria de “alucinação negativa”³. Insistem em ignorar as comunidades humanas que são parte do ambiente e que muitas vezes são decisivas para a manutenção da biodiversidade. Negam a essência da paisagem: a mistura inseparável de natureza e cultura.
Assim, no momento em que o Parque Nacional Grande Sertão Veredas foi criado, eu temi. Temi que as comunidades que viviam em seu perímetro fossem retiradas de lá, temi que essa retirada fosse por demais traumática, que não respeitasse nem a delicadeza, nem a dureza dos que ali viviam. Temi que o nome do Parque, Grande Sertão Veredas, manchasse de tristeza e até mesmo de sangue esse que é o livro dos livros para os do sertão, para os do Cerrado e para os que têm alma. Parte dos temores se justificaram… mas ainda bem que boa parte, não. Junto com as outras unidades criadas logo depois, uma área significativa de Cerrado se mantém preservada no que se chama hoje Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu.
No entorno do Mosaico, porém, a vida seguiu outros cursos. As monoculturas se espalharam, a pecuária se expandiu, os rios foram barrados, enfim, o mundo seguiu seu torto caminho, atropelando quem pensa diferente, ignorando quem alerta sobre os riscos e transpirando a arrogância dos que não têm dúvidas. Se ambientes globalmente valorizados perecem rapidamente sob o tacão dos senhores da morte, biomas como o Cerrado, cuja beleza é contida e o acesso é fácil, são alvo prioritário da exploração e da destruição, sem que se levantem vozes para protestar. Assim, o Mosaico, cada vez mais insular, fica, todo os dias, um pouco mais ameaçado. Ameaçado pelas atividades do entorno, mas também ameaçado por simbolizar uma outra possibilidade que deve ser negada, ignorada e rechaçada pelos donos do poder, para que não reste nada senão aceitar as migalhas que eles têm a oferecer.
Em um país com uma floresta como a Amazônia, uma planície úmida gigantesca como o Pantanal e a mata que esconde os segredos do Brasil primevo, a Mata Atlântica, são poucos os que entendem e valorizam o Cerrado. O desmatamento na Amazônia mobiliza o mundo, enquanto a destruição do Cerrado não move, nem comove, corações e mentes.
Ainda assim, o tempo passou e parte das comunidades que vivem no Cerrado e algumas das áreas de proteção ganharam algum destaque. Foram estabelecidas políticas públicas, que apesar de estarem distantes de serem perfeitas, contribuíram para o bem-estar dos povos e comunidades dos sertões e das veredas. O caminho que a minha juventude viu se delinear parecia, ainda que com muitos percalços, seguir. Mas, assim é a vida… ela “esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. E, assim, o sendeiro que já não parecia muito sossegado, agora se desinquietou completamente.
Duas vertentes de desassossego se abateram sobre nós. A primeira é um governo que eleva à “alucinação negativa” a política de estado. Não governa para todos, mas apenas para aqueles que pensam como ele e logo existem. Os outros fazem parte do que Ailton Krenak chama de sub humanidade. Originalmente, tratava-se daqueles que viviam nas bordas do mundo, como povos indígenas, quilombolas e outras comunidades locais. No Brasil do governo atual, porém, esse conceito pode ser expandido para abarcar todos que, ao não seguirem cegamente os desmandos do governante, não são mais considerados humanos e podem morrer sem que sequer tenham direito ao luto.
Comunidades locais, povos indígenas, moradores das periferias das cidades, entre muitos outros, têm sido alvo da retirada de direitos. Conquistas que pareciam consolidadas se esboroam como torrões de terra úmida. Garantias duramente adquiridas de manutenção de modos de vida e de territórios estão em xeque. Nesse cenário, o sertão, suas veredas e seus povos estão, por um lado, no olho do furacão e, por outro, a milhões de quilômetros de distância das preocupações do governo brasileiro que só enxerga, neste momento, bois, soja, garimpo e cloroquina.
A outra vertente que nos desassossega é a pandemia do coronavírus. Viver um tempo assim, com as limitações que o perigo de contágio da doença traz, é duro e desafiador. Requer coragem e paz de espírito. Artigos, ambos, em falta nos mercados da humanidade. Pior ainda é refletir sobre as origens da pandemia e entender que parece que nada vai se transformar realmente, mudanças serão feitas para que tudo permaneça como sempre foi.
A pandemia do coronavírus não é um acaso ou um tremendo azar. Ela é resultado da forma com que lidamos com a natureza. E essa forma tem sido bastante predatória, especialmente nos últimos 100 anos. Há alguns meses se sabe que o coronavírus se originou nos morcegos e conseguiu passar a infectar os humanos. Agora também se sabe que esse vírus estava nos morcegos, pronto para infectar humanos, há pelo menos 40 anos. Como isso não aconteceu antes? São o desmatamento e a modificação dos ambientes que acabaram por criar a oportunidade para o vírus. Quando os lugares onde os morcegos vivem são destruídos, eles passam a viver em outros locais e passam também a encontrar morcegos de outras espécies, com seus vírus, e também outros animais, inclusive seres humanos. Esses sucessivos encontros, que antes não se davam, permitem que o vírus salte de uma espécie para outra, causando novas doenças. Pouco adianta, porém, saber de tudo isso se a nossa forma predatória de usar a natureza seguir a mesma.
É nesse ponto que as comunidades locais se fazem tão essenciais, sendo fundamental que nos livremos dessa arrogância que nos faz acreditar que não somos mais parte da natureza e que não dependemos dela. Vislumbrar outras formas de estar no mundo e revisitar o nosso jeito de viver, talvez, seja o único caminho para a humanidade.
Mas como trilhar esse caminho? Longe da natureza, mergulhados nas cidades, passamos a acreditar que só há um jeito “certo” de viver. O grande sertão está tão próximo de Brasília e, ao mesmo tempo, tão distante. Os quilômetros se traduzem numa visão colonialista que acredita que o desenvolvimento tecnológico é a única régua que mede o valor dos povos. Mesmo diante de um evento tão dramático como uma pandemia global, a maior parte das pessoas aposta em soluções pontuais – vacinas, tratamentos e testes – e não em questionamentos mais profundos sobre nossos modos de vida e consequentemente em um movimento de transformação das maneiras com que lidamos com a natureza.
A imensa falta de responsabilidade dos destruidores do Cerrado, aliada à indiferença também irresponsável dos que pouco se preocupam com o destino do sertão, de suas veredas e de suas gentes – agravada sobremaneira por uma narrativa alimentada pelo atual governo de que nada disso tem valor –, dá a medida da impossibilidade desse futuro no qual depositamos nossas esperanças.
O grande sertão, porém, em sua mistura de natureza e cultura, poderia e deveria engolir Brasília, com seus prédios modernistas e com suas largas avenidas. As veredas deveriam alagar os viadutos e fazer submergir os palácios. Não são os limites do Parque, das Áreas de Proteção Ambiental, ou mesmo do Mosaico que deveriam conter essa imensidão. Saber, eu não sei, mas desconfio que a derradeira possibilidade é sertanizar a capital.
¹ O Barão de Langsdorff foi um naturalista e um explorador russo que esteve no Brasil inúmeras vezes no começo do século XIX e descreveu em seus diários nossas paisagens, inclusive o Cerrado.
² Indiana Jones é um personagem de cinema que ficou muito famoso na década de 1980. Ele vivia aventuras incríveis, buscando desvendar mistérios da história em lugares remotos.
³ Essa é uma ideia originalmente de Edward Said usada para mostrar como o opressor insiste em ignorar sistematicamente a existência do outro, a quem ele quer negar não apenas a humanidade, mas a própria existência.
Imagem em destaque: Marcela Bertelli
* Nurit Bensusan é bióloga e escritora. Atua como ecóloga e coordenadora do tema Biodiversidade do ISA – Instituto Socioambiental.