Sobre pedras e monstros

Em Genealogia da Ferocidade[1], o escritor e ensaísta Silviano Santiago vislumbra o livro Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa como um rochedo que despenca do alto da montanha. Um tombo! Ao mesmo tempo distraída e enfurecida, a pedra rola para esborrachar e arrasar os trilhos por onde sacolejava o trenzinho caipira da literatura brasileira. A metáfora da pedra em queda livre produz o efeito de estraçalhar sobretudo a crítica literária que ao longo dos anos tentou domesticar o “monstro literário de Rosa”, segundo Santiago.

Gerais da Pedra[2], documentário rodado em janeiro e fevereiro de 2017, por sua vez, propôs interagir com o monstro rosiano, solto!, em pleno habitat geraizeiro. Para dar também o nosso próprio empurrãozinho no rochedo e vê-lo desabar deslumbrante pelo penhasco, o desejo latente para a realização do filme foi misturar a literatura rosiana com a realidade do sertão contemporâneo. E, se é quase irresponsável mexer com monstros ou catapultar pedras barranco abaixo, o que seria dizer, viver, viajar e filmar perigosamente pelo sertão mineiro guiado pelas neblinas de Diadorim, a fascinante personagem de Grande Sertão: Veredas?

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“Diadorim… Diadorim…” é o que Riobaldo, o narrador do Grande Sertão, entoa, encantado, nas margens das lagoas do Córrego Mucambo, logo quando o amigo Reinaldo revela aquela “apelidação”. Riobaldo peleja, dilacera, vive, cambaleia em todos os redemoinhos do sertão guardando consigo a miragem de um nome em segredo. “Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe”. Dindurinh’, “feito fosse o nome de um pássaro”. Diadorim, Diadorim… diá do Diabo, deá de Deus? Deá de adorar, deadorar, deamar, ou diá do ódio, de odiar? Mire e veja ainda a terminação do nome sugando o im do indeterminado, da imprecisão de gênero, da ambiguidade[3].

Na busca por Diadorim ou por sua “genealogia” – para aproveitarmos o termo de Silviano Santiago – a travessia de Gerais da Pedra procurou cartografar por cima e por dentro do mapa o fluxo de vida, amor e morte de Diadorim pelos gerais.

Diadorim e Cinema: morte, amor, nascimento

Gerais da Pedra foi pensado em três partes, recortadas de acordo com a vida de Diadorim em Grande Sertão: Veredas. O documentário dizdosdesdobramentos, reverberações e interpretações da história da personagem-mito, alvo da paixão e cumplicidade de Riobaldo, o jagunço que conta sua história, em forma de monólogo, na obra máxima de Rosa.

O primeiro ato do filme se passa em Paredão de Minas, onde a personagem morre em luta com o pactário Hermógenes. Aqui, a morte é o tema central, e o plano fechado das entrevistas conecta-se ao silêncio, ao vazio, à escuridão, ao esvaziamento demográfico. O olhar se expande um pouco mais no segundo ato. O fôlego ressurge, o coração procura por mais luz e o amor revela-se no encontro dos rios, nos reencontros das paixões, em passeios de barco no Rio das Velhas, em conversas de família engrenadas pela paixão de pequenas coisas que também são do tamanho do mundo, tudo isso diante do cenário dos encontros entre Riobaldo e Diadorim. O terceiro ato encerra na cidade de Itacambira, incrustada na enigmática Serra do Espinhaço, onde Diadorim teria sido batizada. Ao invés de fechar o ciclo, o ponto de vista da narrativa faz a câmera dançar junto com a paisagem, descontrolando e acirrando ainda mais o contato entre o chão e o imaginário, o real e o fictício, o material e o metafísico, o determinado e o indeterminado. Diadorim chora como um bebê, berra misturando suas lágrimas com as histórias de parteiras do sertão, de nascimento, de batismo.

Ao final dessas três partes, o enredo chega ao nascimento de Diadorim para remeter à vida: a literatura que encarna, que reverbera, que não se fecha em si, que vai para a boca das pessoas, segue no cotidiano e no imaginário, nas prosas e no mito em permanente construção. A linearidade da vida da personagem é desarranjada pela inversão da tríade morte – amor – nascimento. Desarranjo que quer abrir o Grande Sertão para novas tramas e narrativas, para o parto onde a linguagem documentária pode fazer falar e dar vida aos gerais.

A pedra (dos gerais) é justamente o rastro da história cravada ou submersa de um grande sertão rosiano inventado a cada dia, porque a rotina, ela própria, não suporta. A pedra é a linha condutora da narrativa – pesada, densa, mas que também se esfarela, dissolve na paisagem, é a história que carregamos todos os dias, é o nosso próprio peso. Cada vez que uma pedra desaba da montanha, um monstro se liberta e pode enfim perambular por aí aberto aos encantos dos encontros, como quem pega um carro com o mapa do sertão de Minas no porta-luvas e a câmera no banco de trás, com a potência do desejo no pé direito do acelerador.

A pedra, o rastro da história cravada de um grande sertão inventado a cada dia. Gilmara, Paredão de Minas. Foto: Diego Zanotti

Encantamento e Sertão

Nos gerais de Lassance, calor de perder de vista, saíamos todas as manhãs do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, que gentilmente nos acolheu, para cortar a cidade atrás de histórias e rastros de Diadorim, de Riobaldo, desse Grande Sertão vivido, inventado.

Em uma loja de produtos do campo, coisa de poucos passos da prefeitura, trabalha um jovem sério, bem vestido, rigorosamente ereto e com poucas palavras. Estávamos há dias tentando entender o que afinal seria o chamado “os porcos” onde Diadorim teria passado sua infância antes de conhecer o outro menino no porto do rio de Janeiro, próximo à barra com o São Francisco. Conversando com alguns moradores do município, várias versões brotaram: um dizia que o Córrego d’os Porcos era na verdade a Cachoeira dos Porcos, ainda nos primeiros degraus da Serra do Cabral; outro descreditava daquele lugar, que rio com nome de porcos nunca existira; e um terceiro contestava a informação oficial que tínhamos no mapa, do Ribeirão “Os Porcos” desaguando no Rio São Francisco já distante dali, no município de Várzea da Palma: “por ali cês vão encontrar é só toco de eucalipto”. Mas o último informante, o vendedor da loja de Lassance que nos recebeu com a firmeza de quem atende um cliente apressado, tinha uma razão a mais para se afetar com nossa pergunta, mesmo que reticente no início. Ele era filho do Hudson, o proprietário da fazenda Santa Rita, no meio do miolo dos gerais. A sobriedade do local logo virou o tom, tornou-se perplexidade da nossa parte, quando ele afirmou em acento familiar: “ah é, Diadorim passou a infância lá em casa”. Imaginamos os dois brincando junto com os cavalos, o estilingue já armado, a arapuca, correndo para alcançar o barco antes do outro. Voamos longe, para outros absurdos. Você acha que a gente consegue chegar até lá e conversar com seu pai? Com esse carro? É extremamente baixo, não aguenta. Mas fomos…

“Então ele foi me dizendo, com voz muito natural, que aquele comprador era o tio dele, e que moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio-mundo diverso, onde não tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. Muito tempo mais tarde foi que eu soube que esse lugarim Os-Porcos existe de se ver, menos longe daqui, nos gerais de Lassance.” – do carro, na estrada de chão, seguimos viagem acompanhados pela lembrança do jagunço.

Seu Hudson nos recebe encarando a montanha, fascinado com o tombo da pedra que despenca com a história de Riobaldo e Diadorim. O professor aposentado é um encantado pelo monstro rosiano. Câmera, lente, gravador e microfone não falam, mas ali é como se o próprio filme gritasse: “é isso!”. Estávamos diante do nosso personagem-síntese, do dia mais Gerais da Pedra de nossas vidas. Se é que ainda havia dúvida, não tinha mais volta. Nosso Grande Sertão forjado virava cinema no seio do mito Diadorim.

Nossa conversa, inevitavelmente, reproduz o contraste entre realidade e ficção tão presente nas análises das obras de Rosa (que o digam aqueles que rodam atrás do Liso do Sussuarão, locação icônica das andanças do bando de jagunços). Hudson vai ao limite, tem hipóteses, desconfia, estuda, mas se deixa levar. A conclusão dele é que Rosa deve ter visto a fazenda grande, cheia de gado, de gente, de porcos, “só quem viu pode descrever o que era de porco descendo esse cerrado aí”. Reforça que a Fazenda Santa Rita foi passada de tio para sobrinho, porque os fundadores não tiveram prole, assim como Diadorim vivia na fazenda com o tio. Também que o local tem a igreja mais velha da região, o que pode ter chamado a atenção do escritor. Mas diz tudo isso para depois cravar que o Grande Sertão: Veredas é uma trama inventada. E muda de ideia: “Então tudo leva a gente a crer que Diadorim cresceu aqui”. Mergulha na história, conversa com aqueles três estranhos mediado pela literatura. Chega a chorar. “Eu imagino às vezes [Diadorim vivendo na fazenda] e até me emociono. Embora seja ficção”.

Real ou inventado, ficção ou relato verídico, mapa ou sequência de nomes aleatórios, isso não importa. Aliás, vale reforçar: Gerais da Pedra propõe escapar de uma busca pela verdade. Como ensinou o mestre cineasta Eduardo Coutinho, “a minha hipótese é a de que o documentário não forçosamente informa e muito menos educa. O documentário tem que deixar as coisas abertas para que o público pense. E, portanto, eu não estou à procura da verdade, eu estou à procura do imaginário das pessoas”[4].

E haveria de ter coisa mais relevante que o imaginário de seu Hudson? Será que a fazenda existiria se o dono não fosse afetado pela literatura do Rosa? Lá, o próprio define a rotina como de uma “roça romântica”, sem eucalipto, com gado criado com baixa lotação, enfrentando os rigores da seca com rentabilidade e produtividade baixas. Que seria, não fosse tocado pelo monólogo de Riobaldo?

Já é fim de tarde e a gente vai se despedindo com o ouvido ligado numa última conversa entre seu Hudson e a esposa, que, veja só, é chamada pelo companheiro de Maria Deadorina. Afinal, tudo isso existiu? Um jagunço resolveu contar a própria vida, oras. Soltou o monstro, que naquele começo de noite de horário de verão entrou pela janela do carro de Daniel, o motorista que a Prefeitura ofereceu para nos guiar num carro que vencesse os quebra-molas até o quintal da criança que cresceu nos gerais de Lassance: “É uma história muito bonita”, ele disse, no breu da estrada de chão.

Maria Deadorina, tímida, não quis gravar entrevistas. Prometemos voltar um dia, quem sabe em seu aniversário, e seguimos atrás da pia batismal onde ela, menina, tomou o primeiro banho ao pé da Serra do Espinhaço.

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[1] Gerais da Pedra é um filme de Gabriel Oliveira, Paulo Junior e Diego Zanotti, que viajaram por mais de um mês na região do norte mineiro no início de 2017. Feito com recursos próprios, o documentário está em fase de finalização e tem previsão de lançamento em 2018.

[2] O ensaio de Silviano Santiago foi originalmente escrito como prefácio para a edição venezuelana de Grande Sertão: Veredas.

[3] As significações e essências do nome de Diadorim foram extraídas inicialmente dos trabalhos de Ana Maria Machado, “O Nome Perpetual”, em Recado do Nome – Leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens; e ainda de José Carlos Garbublio, “O Mundo dos Duplos”, em O Mundo Movente de Guimarães Rosa.

[4] A frase de Eduardo Coutinho foi retirada de entrevista à Revista Sinopse, n. 2, ano 1, dezembro de 1999, presente no livro Eduardo Coutinho, de Milton Ohata (org.).

Imagem em destaque: “Quando a gente morre de veio e não aprende tudo”. Uma travessia com Seu Joaquim no Gerais de Gameleiras. Foto: Diego Zanotti.


* Gabriel Oliveira é pesquisador e produtor cultural, diretor do filme Gerais da Pedra. Estuda as interações existentes entre a literatura de João Guimarães Rosa e a geografia do Gerais.

** Paulo Junior é jornalista e documentarista, um dos realizadores do CineBaru e diretor de “O Acre Existe” e “Largou as Botas e Mergulhou no Céu”.

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