Território unido, território fortalecido

Um mosaico é a junção de diferentes pedacinhos, que dá origem a uma imagem maior. De forma isolada, nenhum deles tem força ou funciona por si só. Mais que a soma de suas pequenas partes, o mosaico ganha forma na representação do todo, em uma das metáforas mais claras de coletividade e esforço comum. Foi justamente em alusão a essa ideia que a noção de mosaico foi apropriada pelo Ministério do Meio Ambiente no ano 2000, para propor uma política de gestão compartilhada de áreas protegidas no país. Mais do que a soma de hectares protegidos, a proposta foi criar verdadeiros territórios de proteção ambiental. 

Há atualmente mais de 20 mosaicos de unidades de conservação no Brasil, nos mais diversos biomas. A categoria surge com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, instituído pela Lei n. 9.985/2000, chamada de “Lei do SNUC”. Um mosaico de conservação ambiental é formado por um conjunto de unidades de conservação (parques, reservas, APAs, florestas nacionais, etc) e outras áreas protegidas (como terras indígenas e comunidades quilombolas), públicas ou particulares, que estejam geograficamente próximas ou sobrepostas. O objetivo é promover a gestão compartilhada desse território, de forma integrada e participativa, em conjunto com a população. Para isso, são formados conselhos consultivos, compostos por representantes de órgãos ambientais, comunidades tradicionais, organizações da sociedade civil e do poder público.

Rafael Chaves, chefe do escritório regional do Ibama em Montes Claros, explica que a organização em Mosaicos é importante para promover a corresponsabilidade em um território: é a soma de esforços que possibilita amenizar conflitos e problemas ambientais que vão além dos limites das unidades de conservação. “As UCs tem limite físico estabelecido por lei, mas a natureza extrapola esses limites. Quando você tem uma gestão de grandes territórios, se você não tiver um trabalho conjunto, você dificilmente vai conseguir amortecer os impactos”, ele explica.

Zé Erotides e Dona Alice, mestres da Folia do Divino da comunidade de Buracos / Grande Sertão. Foto: Maria Ribeiro

Os Gerais são um território bastante particular, localizado no norte de Minas, na divisa entre os estados de Goiás e Bahia, à margem esquerda do Velho Chico. Apesar de sua recorrente representação em imagens de seca e vastidão, o sertão mineiro traz em si grande riqueza. Nessa porção de terra estão importantes nascentes e afluentes do rio São Francisco, uma mata nativa extremamente bem preservada e grande quantidade de espécies animais ameaçadas, como a onça parda e o cachorro vinagre. A vereda, símbolo da abundância e da vida no sertão, é uma constante no território, salpicado de buritis. “Estamos em uma zona de transição entre vários biomas: a Caatinga, a Mata Atlântica e o Cerrado, com um dos maiores fragmentos de Mata Seca do Brasil”, contextualiza Natália Rust Neves, bióloga e analista ambiental do Instituto Estadual de Florestas (IEF) no escritório do Alto São Francisco. Além da diversidade natural, há também uma enorme pluralidade cultural, devido aos territórios indígenas e quilombolas presentes na região e à cultura dos povos e comunidades sertanejas, que de tão rica foi tema de diversas obras de Guimarães Rosa. 

Preservar toda essa sociobiodiversidade é uma preocupação constante, principalmente ao observar a área ao redor, tomada por grandes plantações de soja, capim e eucalipto. Entre outros fatores, o desmatamento de grandes porções de cerrado na região é resultado da política de incentivo à modernização dos Gerais, levada a cabo na década de 60, que consolidou um modo de lidar com a terra pouco afim à dinâmica e às especificidades sertanejas. O recurso encontrado para a preservação do cerrado em pé foi a criação de diversas áreas protegidas no território, entre unidades de proteção integral e áreas de uso sustentável (ver site).

Cinco anos depois da instituição do SNUC, em 2005, o Ministério do Meio Ambiente lançou um edital para fomentar a criação de mosaicos de áreas protegidas em diferentes regiões do país. Era o instrumento que faltava para integrar as unidades de conservação do sertão mineiro. “A Funatura [Fundação Pró-Natureza, de Brasília], junto com outras instituições da região, se propôs a entrar nesse edital. O projeto foi aprovado e em 2009 o Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu foi oficialmente reconhecido”, rememora César Victor do Espírito Santo, superintendente executivo da Funatura. 

Os estudos sobre o Mosaico começaram em 2006, antes mesmo do seu reconhecimento oficial. A ideia era analisar as principais características do território para promover o desenvolvimento da região com bases sustentáveis, integrado à preservação local. Assim foi construído, a diversas mãos, o Plano de Desenvolvimento Territorial com Base Conservacionista (DTBC) para o Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu. A partir dele, foram estabelecidos três pontos de atuação, desenvolvidos em uma parceria com o Fundo Socioambiental da Caixa Econômica Federal.

O primeiro deles é promover a gestão integrada das unidades de conservação e demais áreas protegidas do Mosaico. Uma das principais ações nesse sentido foi a implantação das reuniões do Conselho do Mosaico. Os 41 conselheiros (membros de órgãos ambientais como o IEF e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio; entidades do poder público, como as prefeituras dos municípios; e organizações da sociedade civil, como o WWF, o Instituto Rosa e Sertão, a Cáritas e as cooperativas agroextrativistas), se reúnem a cada três meses, desde 2010. A ideia é que todos os envolvidos possam discutir os problemas e propor ações coletivamente.

O segundo ponto do plano é promover a prática do agroextrativismo, geradora de renda para os produtores locais. Isso significa dar apoio e assistência às famílias que realizam o extrativismo sustentável de frutos e frutas da natureza, no caso, do Cerrado. “É uma forma de oferecer meios para que essas pessoas possam se manter no território e viver do jeito que sempre viveram, junto ao Cerrado, mas de uma maneira digna, com uma renda a partir do uso e comercialização desses produtos”, explica Luis Sérgio Martins, gestor do Parque Nacional Grande Sertão Veredas.

A Cooperativa Sertão Veredas foi a principal responsável pela implantação do projeto de agroextrativismo junto ao Fundo Socioambiental. A CoopSertão foi fundada em 2006, com o apoio do Plano de Desenvolvimento Sustentável do Entorno do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, desenvolvido pela Funatura. O engenheiro agrônomo Wilson Miguel, membro da cooperativa, conta que antes do projeto as comunidades estavam dispersas e pouco se falava em extrativismo com visão comercial. “O Mosaico facilitou a estruturação da cooperativa. Conseguimos comprar caminhonete, moto, freezers para as comunidades e equipamentos para trabalhar dentro da fábrica. Isso sem falar nas capacitações técnicas para trabalhar esses produtos”, conta. No começo eram 26 associados nos municípios de Arinos, Formoso, Chapada Gaúcha e Urucuia. Hoje são 96 e a cooperativa abrange também os municípios de Januária, Bonito de Minas e Côcos, na Bahia. A demanda vai longe: produtos como a conserva de polpa de pequi foram exportados para o Japão, animando as vendas e as expectativas dos cooperados.

O terceiro ponto do plano é promover o desenvolvimento do turismo de base comunitária, como forma a valorizar as tradições culturais e as riquezas naturais do território. O Instituto Rosa e Sertão, responsável por executar o projeto de turismo junto ao Fundo Socioambiental, desenvolveu iniciativas como a articulação de redes de hospedarias, a organização em rede de de pontos de cultura, a realização de viagens de intercâmbio pelas unidades de conservação e a publicação de materiais de comunicação para a divulgação do Mosaico. A premissa é simples: ao tornar públicas as riquezas naturais e culturais da região, movimentando recursos em nível local, moradores e turistas passam a entender melhor a importância da preservação do espaço e de seu povo.

Pintura rupestre do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu. Foto: Hugo Messina

Ao que tudo indica, o esforço de gestão coletiva nesses últimos 10 anos tem surtido efeito. No estudo da efetividade dos mosaicos do país publicado pela WWF – Brasil no ano passado (Gestão integrada de áreas protegidas – uma análise da efetividade de mosaicos – Gisela Herrmann e Cláudia Costa – WWF Brasil – 2015”), o Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu apresentou o melhor resultado entre os mosaicos avaliados, com 80% dos indicadores efetivos. “Não sei se pela proximidade de Brasília, ou pela força da Funatura, mas eu percebo que nosso Mosaico é um modelo para os outros. Tanto de captação de recurso, como de mobilização das comunidades”, avalia Natália. Ela menciona também o vigor da organização comunitária que a atuação em Mosaico possibilitou: “Atuei de 2009 a 2014 no Conselho do Mosaico e vi as cooperativas se transformando, crescendo, o pessoal do extrativismo conseguindo mais recurso. A gente também teve uma melhoria na questão dos incêndios florestais, por causa da união. A qualidade dos gestores também melhorou, com os cursos e capacitações. Então foram muitos ganhos, ambientais, sociais e culturais”.

Para Damiana Campos, colaboradora do Instituto Rosa e Sertão, a criação do Mosaico foi essencial para pensar o território de forma coletiva, potencializando a comunicação e a articulação em rede entre os diferentes sujeitos que vivem ali. “Eu vejo com muita clareza como isso impactou fortemente nossa relação, não só como instituição, mas como moradores e agentes desse processo. Hoje a gente já consegue mapear dentro do território quantos pontos de cultura estão conectados, quantos agentes ambientais temos na região”, ela afirma. Damiana vê essa rede materializada no Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas, realizado há 14 anos em Chapada Gaúcha. “O Encontro já era uma potência, trazendo as comunidades de Chapada. Quando amplia pro Mosaico, então… No ano passado, tivemos dois grupos diferentes de São Gonçalo que se conheceram. As bordadeiras de Itacarambi conheceram as bordadeiras de Serra das Araras. Tivemos os Xakriabá junto com a Folia de Reis. Já teve gente no censo que se autoidentificou como indígena depois disso”, ela conta. “Tudo isso é muito potente”.

Perguntados pelos problemas, ameaças e dificuldades que perpassam essa década de trabalho conjunto, os membros do Conselho trazem à tona diferentes questões. A falta de interação dos órgãos do estado com a gestão das unidades de conservação é uma delas. “Não adianta cada um ficar na sua caixinha. É preciso integrar e divulgar as ações, para corresponsabilizar as pessoas”, afirma Rafael Chaves. Débora Takaki, bióloga da prefeitura de Januária, vai na mesma linha. “Nenhum município tem políticas públicas que defendam o mosaico. Existem ações alinhadas, mas não políticas específicas. É de suma importância que as prefeituras participem e implementem as políticas públicas que amparem legalmente essa linha de trabalho”, ela defende. 

Seu Santilino e Dona Maria Odete, comunidade Morro do Fogo / Grande Sertão. Foto: Hugo Messina

Kolbe Soares, analista de conservação do programa Cerrado Pantanal do WWF, destaca as ameaças externas, como o desmatamento provocado pelo agronegócio: “Fazemos periodicamente um mapeamento de uso do solo do Mosaico e temos observado que as áreas de conversão do cerrado têm aumentado, devido à expansão de fronteira agrícola”. Os projetos de construção de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) também são uma ameaça constante. “Só no Carinhanha, tem 27 PCHs previstas. É bastante preocupante, porque o Carinhanha é um dos últimos rios livres de barragens na região”, ele explica. Para Rafael, a Supram [Superintendência Regional de Meio Ambiente, responsável pelos licenciamentos ambientais no âmbito do estado] tinha que participar do Conselho do Mosaico, de forma a provocar esse tipo de discussão internamente. De fato, no estudo de efetividade de Mosaicos do WWF, um dos piores indicadores avaliados no Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu é o que trata da influência do Conselho em processos de licenciamento. 

Outra média baixa do Mosaico no estudo diz respeito à discussão da gestão integrada pelos gestores das UCs fora das reuniões do Conselho. Esse ponto é um consenso entre conselheiros: há ainda muito o que avançar do ponto de vista da gestão compartilhada. “Foi uma linha em que o mosaico avançou muito pouco. Claro que quando você fala sobre agroextrativismo e turismo comunitário, isso vai influir nas unidades diretamente. Mas a linha que ficou pra trás foi a gestão integrada”, avalia Luis Sérgio. Recentemente, foi criado no Conselho um grupo de trabalho dedicado à questão, para fortalecer essa linha de atuação. 

Foto: Hugo Messina

No mosaico de falas dos diversos conselheiros, emerge ainda um desafio que parece central: o diálogo, ainda que conflituoso e tumultuado, entre visões sobre preservação e desenvolvimento. Uma discussão recente nesse sentido foi a proposta de ampliação do Parque Estadual Veredas do Peruaçu, que traria impactos para as comunidades de Morro do Fogo e Barro Vermelho. Mais do que um problema, no entanto, Luís Sérgio destaca a potência desse espaço de escuta e discussão. “A gente sabe que a questão econômica quase sempre prevalece em detrimento a qualquer coisa. Então eu acho que o Mosaico está colocando em pauta o que e sustentável e o que não é. E com isso segurando um desenvolvimento econômico desenfreado, que não é sustentável. Talvez essa seja a grande contribuição do Mosaico”, ele afirma. Para Damiana, debates como esses são fundamentais. “Não é que a gente esteja de um lado e os ambientalistas de outro, mas há limitações. Tanto do nosso lado, como do deles. Temos que nos formar continuamente, criar espaços de diálogo, para que possamos nos fazer ouvir”, ela aponta. “Afinal, estamos todos de um lado só: pelo cerrado em pé”.  

Imagem em destaque: Gruta do Janelão, Parque Nacional Cavernas do Peruaçu. Foto: Tom Alves


*Carol Abreu é jornalista, educadora e integrante da banda Djalma não entende de política.

**Juliana Afonso é jornalista e integra o projeto Cinema no Rio São Francisco.

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