Uma história do Vão

“Eh… Que nem o Vão-do-Buraco? Ah, não, isto é coisa diversa – por diante da contravertência do Preto e do Pardo… Também onde se forma calor de morte – mas em outras condições… Gente ali rói rampa…” (GSV, João Guimarães Rosa)

Diante de casa, sob o alpendre, o velho Joaquim, chamado Quincas Branco, assunta a paisagem, silenciosa enquanto ninguém passa. Sentado em um banco de madeira comprido, espera que, ao seu lado, se sentem os que por ventura encostarem ali para trocar dois dedos de prosa, como é de praxe. A casa está em um ponto estratégico: justo na bifurcação que leva à rota por onde o povo dos Buracos circula, diariamente, indo e vindo de seu povoado à estrada que dá acesso à Vila (a cerca de 7 km dali). De frente para a casa está a escolinha rural, construída em um pedaço de terreno doado pelo próprio Quincas, e logo adiante se vê o campo de futebol onde o povo se reúne aos finais de semana. A partir daquele ponto, irradiam as outras casas, cada qual em um dos lotes herdados pelos sete irmãos de Quincas. 

É ali que os transeuntes costumam parar e contar o causo de suas viagens. Em troca, ficam sabendo das andanças dos outros. E nessa movimentação conversadeira, a geografia do povoado espraia-se para além de sua localidade, o interior de um cânion de 30 mil hectares, chamado Vão dos Buracos, ao norte de Minas Gerais, parte do município de Chapada Gaúcha.

Nascido ali para desaguar no São Francisco, o rio Pardo veio ao longo dos séculos cavando o Vão que hoje abriga três outras comunidades, além dos Buracos (Inhuma, Buraquinhos e Barro Vermelho). São povos lavradores cujos costumes e cores misturam tonalidades afro-indígenas e europeias, como se retraçassem, na tez e nos modos, a própria história de ocupação humana do Brasil. Mencionado no romance Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, o lugar aparece como contraponto ao temido, ermo e infernal Liso do Sussuarão, área de árida chapada. No Vão-do-Buraco, diz o protagonista-narrador Riobaldo, “também se forma calor de morte – mas em outras condições… Gente ali rói rampa”. De fato, do alto do mirante dos Buracos, vemos o Vão por inteiro: uma enorme fenda encerrando a chapada que se estende rumo ao Planalto Central. As íngremes rampas de chão que nos levam aos Buracos em cerca de duas horas a pé formam o “Caminho de ouro”, como o trajeto é conhecido no circuito turístico local. O nome remete à cor da terra que, parda como seu rio, sob certa luminosidade transforma o percurso em uma faixa dourada a refletir o sol. É de impressionar. Quem de longe olha cá embaixo não avista as casas nem imagina que ali more gente.

No cenário histórico da ficção de Guimarães Rosa as veredas baixas do Vão eram apenas uma referência à vizinhança de Serra das Araras, vila solitária, paragem de bandidos. Preocupado com sua travessia, Riobaldo anuncia a agrura que o cerrado lhes reservava naquelas bandas; por certo não estava preocupado com um povoado perdido em meio a um buraco do Sertão. Se é que imaginaria haver ali qualquer habitante que fosse. Mas podemos imaginar esse encontro por nossa própria conta, pois na mesma época em que Riobaldo sofria sua travessia, os avôs de Quincas Branco chegavam ao Vão para morar, inaugurando o lugar.

Zezu, sua esposa Dilma e filhos, comunidade Buracos. Foto: Hugo Messina

TUDO EM FAMÍLIA

Foram três casais originários, progenitores de todo o povo que veio existir depois. A partir da chegada de João Gomes, comprador da Fazenda dos Buracos, e de dois casais “agregados” (cunhados e concunhados de João), a terra dos Buracos veio sendo povoada por seus filhos, netos e bisnetos. Assim os Gomes combinaram-se com os Pereira e os Carneiro, casando-se entre si, fazendo filho ao longo das gerações. “Tudo primo, tudo parente”, comentam os dos Buracos sobre si mesmos. João Gomes, avô materno de Quincas, foi quem comprou a Fazenda dos Buracos e veio cá morar trazendo a esposa, Dona Joventina, chamada Jove.

– “Aqui é assim, tudo misturado. Às vezes, acha que não é, mas é. Tem que ver onde começa o trem, vai puxando e descobre que lá atrás toca parentesa. Netos pra lá, ó, tudo parente. Olhando lá em cima, junta… É, é igual documento de terra pra saber quem é o proprietário: vê procedência, é da família. Ahahah!”

E de onde eles vieram?

– “É tudo dessas beiradas do São Francisco. […]. Meu avô morou no Curral Velho, nesses lados do São Francisco, depois ficou um tempo no Goiás e logo veio pros Buracos. Derradeiro foi que ele foi pro Goiás, onde arranjaram o pai de Dona Zefa para casar com a filha do meu avô, irmã de meu pai, João Branco”.

Houve uma dezena de casamentos entre os descendentes daqueles três casais originários, sucedendo-se gerações de “primos primeiros” esposados, misturados. Formou-se assim o povo dos “Pereira Gomes”, atualmente a família mais numerosa dos Buracos, habitante do rio Calengue, belo afluente de águas claras do Pardo.

João Branco é um desses casos de mistura: genro e sobrinho de João Gomes, é pai de Joaquim Branco, o velho Quincas, nascido “duas vezes Gomes”, como ele mesmo gosta de destacar.

– “Puxei o nome no sangue pelo ramo da mãe e do pai!”, diz, mostrando orgulho. A posição na família concede-lhe autoridade quando o assunto é a história do seu povo. 

– “Pergunte a Quincas, ele sabe contar o causo direito”, diziam-me a toda hora. 

Ele, por sua vez, saboreia a fama de bom proseador. Capricha nos causos do tempo de primeiro. Diz que seu avô, João Gomes, era endinheirado, e conta do dinheiro enterrado debaixo do pé de Jatobá, nunca encontrado.

– “Já cavucaram tudo e nada. O povo diz que no local aparecem visagens, seres encantados. É bestagem!”, ralha Joaquim. 

Os sobrinhos vêm lhe pedir conselho sobre um gado sumido:

– “Tem que procurar perto da Grota D’água Ruim, é para onde o gado que vem da Manda-Saia costuma fugir. Mas, ó, tem que cuidar aquela veredinha acolá, areia mole depois da chuva é boa pra vaca atolar”. 

E, do conselho, surge um causo antigo:

– “Perdi o cálculo da viagem e parei no meio do cerrado, com aquela sede… Deitado como que morto, no dizer do outro, como que dizendo, Pode comer, vem onça, pode comer! Hahahá!”

Casa de Seu Nico, comunidade Buracos. Foto: Mariana Cabral

A POSSE DA TERRA

Era o tempo em que só existia o cerradão brabo. Na Vila, uns poucos ranchos das “famílias pioneiras”, recém-chegadas do sul do país. Naquela época, final dos anos 70, o povo dos Buracos viu pela primeira vez carros a motor. Até então só conheciam carro de boi. Foi quando Quincas, seus irmãos e seus primos trabalharam nas empreitadas dos gaúchos chegantes: 

– “Esta estrada que hoje é a BR, a gente abriu foi no braço! Na enxada!”

Naquele tempo, a Vila dos Gaúchos era um lugarejo. Duas décadas depois, tornara-se a cidade-sede e homônima do município de Chapada Gaúcha, com hospital, banco, correios, delegacia, comércio. Tudo começou com o PADSA (Projeto de Assentamento Dirigido de Serra das Araras), iniciado em 1976, sob comando do Governo Federal Militar, que loteara áreas devolutas da região e as vendera a preços acessíveis aos produtores rurais migrados de estados do Sul. O povo dos Buracos fazia parte do município de São Francisco. Com o esforço de municipalização empenhado pelo gaúcho Eloe Baron – um dos pioneiros de Chapada, então vereador do município de São Francisco -, muitos dos antigos buraqueiros tiraram pela primeira vez a carteira de identidade e – fundamental – o título de eleitor. Alguns ganharam também lotes na cidade que nascia, tendo por condição construírem morada sobre o lote. O gesto visava alcançar o número mínimo de moradias em área urbana requisitado para a emancipação municipal. Como efeito colateral, criou uma cidade que, embora projetada com avenidas largas evocando “progresso” e “modernidade”, esconde, nas casas mineiras sem reboco, uma rotina de prosa calma e roceira. Nos Buracos, muitas famílias possuem uma casa na roça e outra na vila, movimentando-se regularmente entre cá e lá.

Com a criação do município de Chapada Gaúcha, em 1996, o gaúcho Eloe Baron veio a ser eleito seu primeiro prefeito. O nome do novo município fora levado a pleito dois anos antes da emancipação e, embora tenha ficado em terceiro lugar na votação, acabou sendo o escolhido. O norte de Minas Gerais ganhou assim a marca cartográfica do domínio político do agronegócio. Displicentemente, contudo, a gente dos Buracos até hoje se refere à sede municipal pelo nome de “Vila”.

Após dois mandatos do gaúcho, um mineiro da roça foi eleito prefeito: Raimundo Ribeiro Gomes, chamado Mundinho. Seu povo, habitantes do Ribeirão de Areia, é não só vizinho como parente chegado do povo dos Buracos. No Ribeirão – lugar de terras devolutas e menos férteis que as do Calengue -,  foi morar “um ramo dos Pereira”, agregados de João Gomes, gente que não se casou com os Gomes, herdeiros proprietários da antiga Fazenda dos Buracos, e portanto teve que procurar outras terras para construir casa e família. Mundinho criou-se em uma família dessas famílias, “dissidentes dos Buracos”, como ele disse certa vez. Eram antigos “agregados” – como fora também Riobaldo e a grande maioria dos sertanejos, até hoje.

Não por acaso, Mundinho iniciou sua trajetória política no sindicato de trabalhadores rurais, a exemplo de seu primo e também dissidente dos Buracos, Eloy Ferreira da Silva, figura importante na história sindical do país durante a Ditadura Militar, assassinado em 1984 devido a conflitos de terra. Sobre o causo, Mundinho deu seu testemunho ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, contribuindo para uma publicação da Comissão Nacional da Verdade, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em 2010:

– “Tenho lembranças vivas sobre Eloy Ferreira da Silva, pois desde criança cresci vendo acontecer reuniões de sindicato. E uma das grandes preocupações de Eloy era a posse de terra, pois na região toda estava acontecendo especulação de terras principalmente pelas reflorestadoras que recebiam financiamento e incentivos fiscais, e precisavam de terra para implantar projetos, principalmente de eucalipto e pinos. Essas terras quase na totalidade eram devolutas e o Estado legalizava para as reflorestadoras, que compravam as posses dos moradores antigos quase de graça, e ainda acontecia casos em que os posseiros eram lisonjeados a venderem seus direitos de posse com falsas promessa de emprego nas firmas. […] Quando resistiam, eram ameaçados de perderem as terras e não receber nada […] Isso aconteceu em todo o norte de Minas e resultou que estes moradores migraram para as cidades, como São Francisco, Januária e outras; ou foram para os grande centros, Brasília e São Paulo”.

COSTUMES GUARDADOS

Desde aqueles idos – e recentemente com vigor renovado – grandes monoculturas vêm avançando sobre as áreas de cerrado, cobrindo-as sobretudo com soja e capim. Por sua topografia tortuosa, o Vão dos Buracos mantém-se relativamente preservado; inútil para grandes lavouras e habitada por pequenos agricultores familiares, a terra usufrui ainda das inúmeras veredas e afluentes do Pardo. Mesmo que o desmatamento até a beira das encostas provoque assoreamentos, e que os buritizais estejam cada vez mais secos, a paisagem ainda guarda um bocado da mata antiga. 

A grande diferença, como disse Dona Rosa, esposa de Quincas, é que “agora o mundo todo está mais perto”. Em 2006, quando a luz elétrica chegou aos Buracos através do Programa Luz Para Todos, em poucos meses praticamente todas as casas já tinham instalado parabólica e televisão. Quase uma regra, foi ela, a TV, o primeiro aparelho doméstico a ser comprado. Isto por certo alterou a rotina das prosas ao pé do fogão a lenha, mas nem de perto exterminou com elas. As idas e vindas roendo rampa também continuam.

Se os antigos buraqueiros costumavam seguir o fluxo do Pardo, rumo às centenárias Serra das Araras, Januária e São Francisco, hoje o deslocamento mais intenso é noutra direção, a oeste, seguindo os caminhões carregados de grãos pela a estrada asfaltada que liga a Brasília. Mas há sempre, ao menos uma data para se estar de volta ao Vão: o Seis de Janeiro, dia de Santos Reis, dia de festar nos Buracos. Assim, como o “giro” dos ternos de folia de Reis, os deslocamentos do povo buraqueiro não perdem o prumo: há sempre que se voltar a visitar a casa de um ente querido. E festar!

Imagem em destaque: Hugo Messina


*Ana Carneiro é jornalista e antropóloga, autora de O povo parente dos Buracos e Que é feito de você, Mangueira?.


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